Nas traseiras da casa de meu pai há uma árvore
copada e acolhedora, traçada para ser sombra. É o caso possessivo de uma criança
que repousa agora em fundo adulto. Como não somos súbditos de sua majestade, o
registo de posse aparece um pouco mais longo e sem apóstrofo, que os portugueses no
registo de propriedade não elidem.
Neste Outono galhofeiro e de engano primaveril,
é um prazer mirá-la abarcando a simpatia inalterada de mesas e bancos fincados em chão que reverdeceu às primeiras chuvas.
Acolhidos à meia penumbra da sua sombra larga,
rememoram risadas de verão, conversas de vai e vem e muita pausa em espapaçada
escuta de si mais os barulhinhos campestres que entremeiam: desabafos de cortiça
que estala ao calor do montado, latidos a passo de cão vagabundo, uma persiana
que isola a sesta do brasido, o riso casado de crianças brincalhonas, a ronda diabólica de moscas que
padecem de inquietude.
A nossa arquitectura vegetal, clorofílica simetria
de ramos em ternura curvada, alarga-se numa aura protectora. É lugar que insta
a confidências e segredos em sussurro, enamoramentos do corpo e da alma,
saudade batida de anos, mulheres que bordam lençóis de atenas, penélopes de variados
nomes que anseiam em quotidianos sem esperança. Ou apenas gente que liberta os
pés do aperto calçado e alça ao banco corrido o latejar das
pernas, em osmose propícia. Ou alguém que, pescoço curvado, se
dilui no bendito hiato da leitura.
Uma
árvore que cresceu assim a chamar-nos, ramos estendidos, tão de conforto e
beleza. Contudo, jamais eu ali pisara ou deixara repousar o pensamento. Na verdade, creio não a ter visto antes. Para mim, nasceu ontem. Só vemos o que nos
permitimos ver. Vou a meu pai assoberbada em pressas de trabalho, desvarios de
eliminar cheiros, preocupações de cortina fechada, a mente em clausura severa.
Mas
ontem foi o dia da minha maravilha contemplativa. E activa: Limpar mesas, bancos
e acertá-los no chão (enterravam em declive perigoso), partir o bolo, trazer as
canecas do chá que a tia gosta de servir - não há chá como o dela e mesmo que
não seja verdade, é bombom bastante ela sabê-lo. Por companhia, a suavidade risonha e fresca
de quem é jovem, o azeviche das sobrancelhas a chamar um dedo maravilhado que há-de passar em delicadeza amorosa, olhos de tanta promessa que
me receio de vê-los chorar e um sorriso que desvaira de inveja a mona lisa,
cuja, para nosso bem e mal dela, nem sabia sorrir. A minha princesinha, de si
inteira, é cada dia mais linda.
Na
calidez da tarde, o meu pai a encostar a
enxada ao tronco e estender mão de agrado para uma fatia, “eu nunca lancho”. E
sentou-se a mastigar, olhos de infinitos longes, a contar dos invernos de geadões
de tudo branco; e ele a corta mato, gaiato descalço correndo sobre, que tinha de enregar ao nascer do sol, “passei tanta vez pela nossa cova toda
branquinha, assim eu tivesse notas de mil euros” e quedou-se a pespontar tempos difíceis. Enquanto nós três bebíamos, também
pela pituitária, o chá de erva príncipe. E foi um remanso.
Isolada
da malquerença do mundo, vieram-me à lembrança os caramanchões que lia nos
romances de minhas tias e que a minha mãe esclarecia serem uma espécie de casas
todas forradinhas de flores e verduras. Sonhava com tais casinhas que me pareciam
muito boas para brincar e que as heroínas usavam apenas para pensar nos amados e
em outras coisas tristes, escrever cartas de amor e namorar. Ali trocavam beijos
que deviam saber a outra coisa já que nunca os esqueciam e ficavam a rememorar “aquela
tarde no caramanchão”, “a noite no caramanchão”...daí a eu pensar que os
caramanchões tinham propriedades específicas, foi um nada. Pois. Mas é que foi
isso mesmo o que me aconteceu debaixo da nossa árvore. Magia. Não estive por ali sozinha, não.
Estive com quem me quer bem. Ainda que, pronto, eu não sou uma lady de romance
(pronunciava ládi) e ainda menos uma milady (miladí nome que me apetecia
bastante mas a minha mãe dizia que não podia pôr numa filha); também não
conheço sujeitos que andam a cavalo por desporto, usam chicote e vestem a preceito,
as botas a abarrotar de barro, presença dominadora que abomino. Portanto: mandei
passear os caramanchões, a minha árvore que não é minha é que vale. Tem uma
aura secreta que é linda e extravasa.
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