sábado, 29 de outubro de 2016

Caramanchão

Nas traseiras da casa de meu pai há uma árvore copada e acolhedora, traçada para ser sombra. É o caso possessivo de uma criança que repousa agora em fundo adulto. Como não somos súbditos de sua majestade, o registo de posse aparece um pouco mais longo e sem apóstrofo, que os portugueses no registo de propriedade não elidem.
Neste Outono galhofeiro e de engano primaveril, é um prazer mirá-la abarcando a simpatia inalterada de mesas e bancos  fincados em chão que reverdeceu às primeiras chuvas. Acolhidos à meia penumbra da  sua sombra larga, rememoram risadas de verão, conversas de vai e vem e muita pausa em espapaçada escuta de si mais os barulhinhos campestres que entremeiam: desabafos de cortiça que estala ao calor do montado, latidos a passo de cão vagabundo, uma persiana que isola a sesta do brasido, o riso casado de crianças  brincalhonas, a ronda diabólica de moscas que padecem de inquietude.
A nossa arquitectura vegetal, clorofílica simetria de ramos em ternura curvada, alarga-se numa aura protectora. É lugar que insta a confidências e segredos em sussurro, enamoramentos do corpo e da alma, saudade batida de anos, mulheres que bordam lençóis de atenas, penélopes de variados nomes que anseiam em quotidianos sem esperança. Ou apenas gente que liberta os pés do aperto calçado e alça ao banco corrido o  latejar das pernas, em osmose propícia. Ou alguém que, pescoço curvado, se dilui no bendito hiato da leitura.
            Uma árvore que cresceu assim a chamar-nos, ramos estendidos, tão de conforto e beleza. Contudo, jamais eu ali pisara ou deixara repousar o pensamento. Na verdade, creio não a ter visto antes. Para mim, nasceu ontem. Só vemos o que nos permitimos ver. Vou a meu pai assoberbada em pressas de trabalho, desvarios de eliminar cheiros, preocupações de cortina fechada, a mente em clausura severa.
            Mas ontem foi o dia da minha maravilha contemplativa. E activa: Limpar mesas, bancos e acertá-los no chão (enterravam em declive perigoso), partir o bolo, trazer as canecas do chá que a tia gosta de servir - não há chá como o dela e mesmo que não seja verdade, é bombom bastante ela sabê-lo. Por companhia, a suavidade risonha e fresca de quem é jovem, o azeviche das sobrancelhas a chamar  um dedo maravilhado que há-de passar em delicadeza amorosa, olhos de tanta promessa que me receio de vê-los chorar e um sorriso que desvaira de inveja a mona lisa, cuja, para nosso bem e mal dela, nem sabia sorrir. A minha princesinha, de si inteira, é cada dia mais linda.
            Na calidez  da tarde, o meu pai a encostar a enxada ao tronco e estender mão de agrado para uma fatia, “eu nunca lancho”. E sentou-se a mastigar, olhos de infinitos longes, a contar dos invernos de geadões de tudo branco; e ele a corta mato, gaiato descalço correndo sobre,  que tinha de enregar ao nascer do sol, “passei tanta vez pela nossa cova toda branquinha, assim eu tivesse notas de mil euros” e quedou-se a pespontar tempos difíceis. Enquanto nós três bebíamos, também pela pituitária, o chá de erva príncipe. E foi um remanso.

            Isolada da malquerença do mundo, vieram-me à lembrança os caramanchões que lia nos romances de minhas tias e que a minha mãe esclarecia serem uma espécie de casas todas forradinhas de flores e verduras. Sonhava com tais casinhas que me pareciam muito boas para brincar e que as heroínas usavam apenas para pensar nos amados e em outras coisas tristes, escrever cartas de amor e namorar. Ali trocavam beijos que deviam saber a outra coisa já que nunca os esqueciam e ficavam a rememorar “aquela tarde no caramanchão”, “a noite no caramanchão”...daí a eu pensar que os caramanchões tinham propriedades específicas, foi um nada. Pois. Mas é que foi isso mesmo o que me aconteceu debaixo da nossa árvore.  Magia. Não estive por ali sozinha, não. Estive com quem me quer bem. Ainda que, pronto, eu não sou uma lady de romance (pronunciava ládi) e ainda menos uma milady (miladí nome que me apetecia bastante mas a minha mãe dizia que não podia pôr numa filha); também não conheço sujeitos que andam a cavalo por desporto, usam chicote e vestem a preceito, as botas a abarrotar de barro, presença dominadora que abomino. Portanto: mandei passear os caramanchões, a minha árvore que não é minha é que vale. Tem uma aura secreta que é linda e extravasa.

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