Cheguei à igreja com sol, um sol amarelo de outono
claro e português. Agradaram-me os bancos no exterior e gente em conversa
educada, nem uma sílaba a destacar. A capela simples e átona. Lá dentro, em bom
gosto moderno, o Cristo de madeira sobressaltava na brancura. Estelizado e sem
cruz ou rosto que se visse, exalava certo grito desesperado pelas linhas dos
braços em v, o lamento doloroso do “faça-se em mim segundo a tua vontade” vibrando no
ângulo desalentado do segmento do pescoço. E o morto real. A meio, como compete.
Arrumei-me perto dele, os mortos não se mexem, não falam e, à parte o cheiro
que é disfarçado por sprays florais sintéticos que me ferem a
pituitária e avançam até às meninges, portam-se muito bem. Deste, eu conhecia o
género, a nacionalidade e profissão e o nome da doença que o agarrou sem rodeios.
Encerrado na caixa de madeira já nem devia ser ele, mas há o respeito pelo
corpo com que viveu tudo e de que nenhum acto prescinde. E as gentes entravam
educadas a cumprimentar a família, beijar, mimar. Depois, iam até à rua e
juntavam-se em grupinhos de conversa sussurrada, a morte dos outros é um facto
incluso na vida de cada um. E eu, hora atrás de hora, a um metro dele. Nós dois
quase gente conhecida, os eflúvios do ar condicionado a mascarar o cheiro a
morte talvez preferível. Alguém se achega, não quer ir lá para fora? E eu a
ponderar baixinho, só conheço aqui uma pessoa que está muito ocupada porque
todos a solicitam e que vos conhece a todos; lá fora, não conheço ninguém.
Portanto, desculpe, mas prefiro ficar aqui sentada ao lado de um morto que
também nunca vi; afinal, foi para isso que vim. E a senhora em voz polida, ah,
tá bem, na tonalidade de, que parva, esta. E desandou. De modos que ficámos nós
dois, eu e o morto de rabo de cavalo que reparei na foto da entrada. E por ali
estivemos quietos os dois – ele completamente imóvel – enquanto um corrupio de
deveres desfilava sussurrando canseiras depois de um bocadinho de silêncio,
tenho que, tenho que...e saíam a repetir o gesto carinhoso, em promessa de amanhã
volto. Reparei em ti viúva, os pulsos mais finos, dedos maquinais torcendo a
pulseira africana que, quem sabe, o homem do rabo de cavalo te deu; e os teus pés, que conheci descalços e de ténis, estão
agora enfiados em sandálias altas e de bom gosto; noto os teus joelhos de
criança pequena e que tão bem conheço a assomar ao rés da linha da saia e descubro
por detrás do teu olhar o cansaço e a saturação. Mas aguentas. Sem lágrimas. Não
faço nada. Não digo nada. Estou contigo e com ele, o homem que não conheço.
O
corpo falha-me pela manhã e no dia seguinte chego mais tarde do que pretendo. A
porta está como a deixámos: fechada. Na manhã deste 5 de Outubro recuperado,
Lisboa lagarta num contentamento endorminhado de sol e sento-me no degrau de um canto escuso. O
homem do rabo de cavalo dorme na sua cama de cetins. E eu cá fora, a guardá-lo de
nada. Uma senhora, avental a cobrir-lhe a dianteira, aproxima-se
da porta. Vem acompanhada de um sujeito de uniforme, funcionário mais que provável
de uma funerária e oiço, olhe, ali está um morto fechado desde ontem; como não
tem ninguém, fechei a porta outra vez. E eu de dedo no ar, não tem ninguém,
não; eu estou aqui a velá-lo, pelo menos em pensamento. E a mulher,
ahnnn...minha senhora, desculpe, é que eu já tinha cá vindo e não havia
ninguém. E eu, mas já estou há um bocado e não vi a senhora. E depois fui dar o
bom dia ao homem do rabo de cavalo que de certeza não vai voltar a ouvir
cumprimentos matinais (pelo menos os meus). Sentei-me bem perto, podia ele
querer murmurar-me algum recado. Mas é que não; desaproveitou que estávamos
sós, o palerma. Depois de meia hora em que lhe respeitei o mutismo, a minha viuvinha
com pouca arte entrou de olhos papudos a garantir-me, dormi bem, dormi bem. E
no silêncio aquecido do meio dia, juro que ouvi, aldra.... mas ela nem
estremeceu. Remexia na mala. Corria uma angústia de dedos pelo fundo do saco, onde
é que eu pus o telemóvel santo deus, tenho de acordar os miúdos, o padre está a
chegar. E tudo foi o que devia: estavam só a família e amigos chegados. Os “amanhã
volto”, perderam-se, evaporados de todo. Que do homem do rabo de cavalo resta
um punhado de cinza. E talvez muita lembrança.
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