Defendo, acima de tudo, o prazer das pequenas coisas. Em primeiro lugar porque as grandes
não me fazem parte do caminho. Em segundo, tenho em pouco apreço infelicidade e
desamor sistemáticos. Claro que na viagem me surgem buracos negros, poços de
ar, tempestades, o diabo a sete que, por vezes, me parece setenta. E não, não julgo que sejam todos produto do
acaso. Sei bem que muito contratempo vem de mim e por mim. Bom, que é como quem diz, pior. Nesta linha, as
minhas fantasias nada têm de extraordinário. Não são, infeliz e felizmente, de
natureza erótico-sexual. Digo infelizmente porque a sua satisfação ia
dar-me um prazer inédito e lupanar; e felizmente porque tal me exigia outra
pessoa que, neste ambíguo, os prazeres solitários não são bem a minha praia; ora tudo que exige outros, acresce em dificuldade.
E, portanto, nem sei se é pela razão de felizmente, se só porque sim, são fantasias bem comezinhas. Mas não faço por menos: tomo-as por vitórias. Para que seja isto coisa entendível, conto uma desde a origem.
Na
casa dos vinte, eu não era nem um pouco inédita (ainda não sou). Como tanta gente apressada que
enchia comboios e barcos, vivia na margem sul e estudava em Lisboa. À ida, os barcos atulhavam e sentia-se no ar um burburinho de vida retemperada pela noite; no sentido
inverso, traziam conversas ciciadas e silêncios, bocejos, cansaço sem rédea e
olhos baços sumidos em covas e papos. Os próprios pareciam extenuados, chiavam
em queixa demorada e havia um desmazelo poluente que se espalhava pelos bancos adormentados e engolia o oxigénio do ar. Por mais que arenguem os noctívagos, a noite existe, sobretudo, para o descanso
do mundo. Não apenas das pessoas. De tudo que existe.
Nesse
tempo, uma das minhas dilectas amigas estudava e vivia de empréstimo em casa de
uma madrinha, em rua que não sei, muito perto do Parque Eduardo VII. Aos fins
de semana, seguíamos ambas para a outra margem. O meu conhecimento com este parque
de Lisboa remonta a essa época. Jantávamos na cantina da faculdade onde não se pediam
cartões e rumávamos ao destino, com passagem por casa da madrinha para arrotearmos o saco de fim
de semana. A atalhar caminho, atravessávamos pelo meio do Parque e estávamos no
Marquês em três tempos. Suponho que, uma vez ou outra o tenha visto antes. Talvez por alturas de greve no
metro, mas passei sem lhe ligar meia, toda afadigada com as horas, o meu
tempo controladíssimo, a greve a arruinar-me o esquema. Ainda hoje não consigo
saber as ruas que o percorrem, mas, pitosga e desorientada quanto baste,
nocturnamente, deixava-me guiar pela amizade. Seguia ao sabor da sua sabedoria.
Via umas sombras por lá e lembro-me de pensar que, com ruas tão iluminadas e
bonitas logo ali abaixo, não se percebia para que andavam as pessoas a passear no
escuro (não seguiam como nós, às pressas). Aquilo era mesmo um bocado sombrio, ouvia
resmalhar atrás das moitas, mas pensava que fossem coelhos ou passarada. Passava
o tempo a levantar os pés temerosa de covas e cabeços que nem havia e ríamos ambas feitas
tontas. Havia gente que nos seguia, mas sempre pensei que o caminho
não era só nosso e portanto até me sentia acompanhada. Até que certa vez um
senhor que se demorava por ali, nos interpelou ao escuro e eu como sempre a
pensar que queria informações, atrapalhada, agora pergunta por uma rua e eu não
sei qual é. Quis saber o que andávamos a fazer àquela hora no parque. E eu, ela
mora ali num prédio daquele lado e o caminho fica mais perto assim. Ele, isto é
muito perigoso para duas meninas como vocês. É melhor descerem a rua por ali ou
por ali - o braço a apontar as duas ruas paralelas -, não passem mais por aqui.
E nós agradecemos muito, eu para a minha amiga, tu achas que há aqui ladrões ou
assim? Mas a gente não tem dinheiro, o que é que nos podiam roubar, de certeza
não queriam o passe... Mas não voltámos a passar por lá.
Um
dia, fomos as duas à Feira do Livro. Eu e ela. Diurnas, diáfanas e sem tostão.
Gostei do Parque até mais não poder que livros só vê-los. E nasceu a minha
fantasia: deitar-me naquela relva. Todos os anos a olhava a pensar, “é este ano”.
Olhava e havia lá gente solitária e acompanhada, deitada, sentada, a descansar,
conversar, namorar, ler. Pensava, “é só
ir para lá, ninguém me nota”. Mas não conseguia. Anos e anos disto. Muitos. Muitíssimos.
Dezenas. Passava de autocarro ou de carro e um enlevo no relvado, tenho de me
deitar ali, tenho de lá estar nem que seja só uns momentos. Chegava outra Feira
do Livro, tanta gente a flanar, ambiente propício, era só aproveitar. E nada. Saía
a constatar num desalento, “ainda não foi desta”, os jacarandás, “aselha! Que é
que custa ires lá para dentro e deitares-te, hoje é que era”. Até que houve um
dia em que, hélas!, consegui. Entrei, andei lá por dentro como quem caminha sobre nuvens,
deitei-me na relva, o volume de poesia de Ruy Belo sob a cabeça.
E nunca o céu me pareceu tão azul nem o cheiro de relva tão seráfico. Não se
descreve a frescura da terra sob o corpo um friozinho agradável a entranhar roupa dentro, a chegar-me à pele antes desapercebida; e o cheiro, a sensação do azul sobre mim, a coragem de estar ali. Foi um momento supremo. Coisa irrepetível.
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