Não
sei se as coisas mudam de acordo com os espaços que ocupam, mas talvez a mudança nos dê a mão a nós e sejamos uns
aqui e outros acoli. Nada de apôr ao mundo o poder que não tem. Coisas são
coisas. Estão. E a beleza do quotidiano depende de um sujeito para existir, ele
é a possível variação. Quase pueril, o belo vive-nos num raio de sol, na pena que a
brisa levanta, na poeira nebulosa que o vento arrasta em remoinho, na pressa
que agita braços e tranborda do corpo, evitando o passo dos velhos que hesita
vagares e palpa chão.
Contudo, há males que vêm por bem.
São males convertidos ao outro lado, uma espécie de cristãos novos do nosso
sentir. Foi assim no dia em que resolvi visitar o, para mim incógnito, Palácio
da Ajuda. Que, com a minha pontaria e falta de tudo (não apenas falta de sorte),
estava encerrado. E portanto. Visitei, quase em frente, o Jardim Botânico, o mais antigo jardim de
Lisboa. Data do tempo em que D. José, depois do terramoto, por ali mandou
edificar, em madeira, a Real Tenda. E para lá se mudou, duvidoso de edifícios em alvenaria. É pois um jardim lindo e velho. Cheinho de artroses apesar da
reabilitação. Onde os nossos reis e rainhas passearam devaneios e inquietações e
olharam o Tejo sabe Deus com que olhos. Que acrescentaram de espécies exóticas
e Junot saqueou sem dó. Que, provavelmente, os lisboetas olvidam, na febre de
natas de Belém e Jerónimos e Torre de Descobrimentos e demais história de peso.
E não apenas eles. Que o encontrei quase sozinho ainda que o curso de agronomia
por ali faça das suas. Deambulei entre árvores centenárias de temíveis raízes
egocêntricas, raízes fantásticas e denodadas que partem bancos de pedra e não
se sabe se sustentam troncos e copa, se lutam contra eles. Em tudo, o mesmo se
repete: com a idade, as raízes crescem, invadem, e o seu vigor ameaça a
realidade aérea. Observei os efeitos do tempo em troncos esventrados, que
sobrevivem com auxílio, bengalas de metal a endireitá-los, que a coluna
vertebral das árvores também sofre. São árvores em fim de ciclo. E a gente
passa com respeito por tão longa vida. Continuam como sempre: quietas, paradas,
sujeitas às estações. A algumas o tempo esgarnou hastes e tronco, a outras
encaneceu. Mas olham ainda a paisagem, contemplam de alto a beleza do Tejo, embebem
nos barcos de brincar que ali vogam. Descanso num banco inundado por retalhos
de luz que espreita em intervalos de folhedo. E creio que sou feliz. Sou feliz pelos
braços soalhentos e olhos fixos no longínquo azul a colar no céu, pelo quase
silêncio e por nada me ser exigido, imersa no consentimento de me deixar tomar
pelo agora, levada por doce insinuação de sol e claridade. Flutuo. Olho por
dentro as orquídeas das estufas que espreitei lá atrás. Lindas e únicas.
Espécies vivazes, mas circunscritas. Vizinhas umas das outras. Perguntei, achas que são felizes?, e ela, não
sei. Pergunta retórica, sei a resposta. Nenhuma flor é feliz em cativeiro, sem o
alimento dos olhos de outrém a catalogar. A indefinida existência de flor é vaguidão.
Não
sei o que pensaram D. José ou o senhor Marquês de Pombal ao construir este
jardim. Mas sei, de certeza, o que sinto a passear dentro dele, a desvendá-lo
em princípio de tarde clara, a inscrevê-lo e inscrever-me por surpresa e maravilha.
Nas estufas reais e gradeadas, as orquídeas. Sem visitas. Flores lindas e máximas.
Preferência de D. Luís. Fixas em retintas cores. Carnudas e arqueadas. Reunidas.
Jamais vi flores de tal tristura.
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