Bonito.
Ali estava eu acocorada e de braço no ar. Eu e um homem que mal via contra o
sol (ai os óculos, ai o chapéu). Baixei o braço. Levantei-me. Juro que ele não
buliu, figura sólida e consistente. Confirmei, não era fantasma ou morto-vivo.
Olhei franzidamente o rosto escurecido contra a claridade, traços sombrios e indistintos. Usava óculos de sol, coisa que
aos mortos não lembra se lhes dá para aparecer.
Puxei da minha tonalidade mais saturada, aquela que a minha avó
apelidava de “desimpaciente” e respondi, não tenho lume, não fumo. Não se
moveu. E eu, mau Maria, não querem lá ver que não me respeita a idade e nem o
lugar? Acrescentei, procure noutro sítio. Então ele mudou de lugar e, à
claridade alentejana vi-lhe o rosto. Em jeito afável, sorriso de olhos
longínquos, invectivou quase doce, não me conheces, mas conheci-te mal te pus
os olhos, carregavas um balde com água. E eu já a abraçá-lo numa alegria também
temperada de antigo, cheia de gregas e colchetes pegadiços, Octávio!...que é
feito de ti? Há quantos anos...Ele a explicar-se, vivo por aqui, se vou para o
outro lado, atravesso pelo cemitério. É mais perto, não tem ninguém e
despacho-me num instante. – e a escorrer troça bem humorada, aquilo do lume era
a brincar, só para me reparares; há muito que não fumo.
Esqueceu
a pressa. Esqueci o sol na moleirinha e a beldroega. Esquecemos o lugar. Num
cemitério cheio de sol, atardámos à conversa de muito ano, pergunta aqui, recorda
ali, até ao toque da sineta. Era a hora de almoço. Despedimo-nos afogueados e
suarentos, com promessas de reencontro, um café, um lanche em lugar fresco, só
para desdobrar assunto. Meti-lhe no no bolso o meu número de telemóvel, enfiei
os apetrechos no saco, a beldroega maneta a olhar-me intempestiva, tufada de
rancores. E rumou cada um para seu lado. No regresso, ainda imersa em novidade e agradada do acaso, notei
o quanto nos tínhamos perdido em memórias sem assomo de presente. Contudo, ele
levara o meu contacto e tinha-me parecido contente com o encontro; havia tempo
para.
Mas
a vida enrola-se-nos à cintura e exige. Entrei em casa e os chamados instantes
da realidade mais a vizinha que uma ambulância levou já sem vida, varreram-me o encontro feliz. Só voltei a lembrá-lo quando, à tardinha, em regurgitação de
cansaços, visitei minha irmã. Estávamos à mesa – é à volta de mesa posta e
redondas conversas por entre a mastigação que esmiuçamos novidades – e
contávamos as pequenas bagatelas que desoprimem as mulheres. Minha irmã é prazeirosa de ouvir, conta a
cores e faz de tudo uma história. Tenho certeza que aquilo que tão bem
encadeia, só é bonito e alegre por ser ela a contá-lo. Domina a
suprema arte da oralidade. Esguia as palavras, prolonga uns sons, encurta
outros, e dá, a cada, um novo fôlego. Porém,
a mente é sinuoso ruminante; descontraída, compraz-se a trazer à consciência o
que antes esqueceu. Por entre o conversedo, trouxe-me o Octávio. E, pela
primeira vez, reparei na impressão agradável que me deixara. Virei-me para ela,
não adivinhas quem encontrei hoje....e ela toda olhos em ponto de interrogação,
quem foi. E eu, o Octávio, aquele garoto que vivia na nossa rua quando
começámos os estudos, lembras-te? Ela pasma, olhos em bico que é como quem diz
redondos de admiração. E torno, grande surpresa, ham, nem perguntas como está. Ela
a fixar-me de mão estendida e faca paralisada a meio de uma fatia de bolo, esse
Octávio não foi de certeza, o rapaz morreu vai para mais de dez anos. Eu, não
pode ser, pois se o vi, dei-lhe o meu número de telemóvel e tudo. Ela séria,
deixa-te dessas coisas, o rapaz morreu, então não te recordas? E não me
recordava. E também tinha certeza, era ele.
Mas a faca ainda estava parada a meio do corte e disfarcei, tens razão,
deve ser confusão, ele disse Octávio e lembrei-me desse, mas deve ser um colega da secundária. Não faças caso. E a faca desceu suave até ao breve
estalido de bater no prato de loiça e a fatia já separada, a querer tombar. E eu
para dentro, atónita até ao mais fundo de mim, que grande imbróglio.
É
noite fechada. Estou em casa. Penso no Octávio. Nele. O único que conheço ou
conheci, que não é nome muito usual. Bem sei com quem conversei e sobre que
assuntos. Era ele inteiro, o que estudou comigo, morou na minha rua e muito
livro trocámos até à sua mudança de residência e de cidade. Não há engano possível,
era ele. Mas confirmei com amigos, eles ao telefone, morreu mesmo, é verdade, sim. Soube que está enterrado naquele
cemitério. O mais incrível é que não me assusta a certeza de ter estado à
conversa com um morto. Contudo, não sei
se volte que os sardões já me afastavam qb, entrava a arrastar os pés só para
lhes dar azo à fuga.
Não
pode ser, não apanhei sol a mais. Eu não o inventei. Ele levou mesmo o meu número
de telemóvel, tenho meia folha da agenda rasgada a comprovar (e a beldroega
maneta, que assistiu a tudo). Um dia destes, quem sabe, encontramo-nos com um refresco na frente. É um morto? Ora, a mim tanto se me dá.
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