Quando
Lobo Antunes escreveu uma crónica impante de pequenos prazeres –
prazeres mais ou menos inocentes que os outros ele coíbiu e não contou – logo verifiquei
que os meus momentos gozozos eram outra
natureza e num repente pensei copiar-lhe a ideia. Fiquei-me na intenção, posto
o que, estou convicta, o inferno me aguarda enfronhado em seus tórridos calores.
Ora, por acasos e circunstâncias, o meu dia de hoje correu afadigado e momentos
gozozos não sei se teve, mas um café avantajado tira-me do sério e às sextas há
pouca coisa capaz de me abalar a disposição.
A
bem contar, o meu hoje começou ontem.
Isto porque a idade chama umas manias orgânicas que a vontade obedece. Foi
assim: sabendo embora que o meu sono apanha o comboio a horas certas, ontem
resolvi contrariar, fazer serão e portar-me como outrora, quando lia sem
destino até às tantas da madrugada. Foi óptimo. Enquanto li. Mas o sono voou. E,
nos breves intervalos de dormir, logo o enorme lago do livro se transmutou e me
vi a tentar nadar num lago que mais parecia um riacho, quase sem água, com pargos
gordos e dormentes entre as pedras e eu prazer algum, a lançar os braços atrás –
nadava costas – e a pensar, agora a mão bate nas escamas do peixe ou acerto no
bico de uma pedra. De modos que por mor do medo de ambos, acordava. Adormecia de
novo e a minha gata gorda, opada como os pobres ratinhos das experiências a
quem estimulavam o centro da fome e que devinham bola de pêlo, bigodes
retesados como agulhas. Voltava a acordar, contente de ser sonho. A bichana tem
andado a portar-se mal, mas não merece tanta tragédia. Mal adormecia, logo
outro pesadelo galopava a madrugada (esqueci o último). Portanto: a modos que
quase não dormi. Mas depois de un latte
macchiato (muito macchiato) esqueço a penúria nocturna, estou pronta para a
manhã de trabalho. Sozinha em casa (com a mulher a dias), sem necessidade de
fazer um almoço comme il faut. Uma
tarefa menos; noves fora, nada. Passemos mais ou menos em branco esta parte de
corre corre entre lavagens manuais de roupas e tapetes, ajudas domésticas de
mil pormenores saturantes, dar cera no chão que a gata tem andado feita anormal
ou está com problemas de bexiga... Caiamos na piscina. Isso sim, é um prazer dos
maiores (coisa de que Lobo Antunes não aflora). Mas atraso sempre. Por mais que
deseje chegar a horas, às sextas, sou impontual. Entro cansada, saio cansada.
Mas é outro o cansaço final, e no durante deslembro de fadigas. Sou bem capaz de me cansar. A posteriori, ganhei consciência de que me divirto
grandemente e sem amanhã. Por magias da água aquecida, volto à infância,
pertenço a um mundo só com presente e canso-me de vontade. São 40 minutos
fugazes, sobretudo porque nado só 25 ou 30. (isto nos meus dias mais
cumpridores). Depois de um banho revigorante, saio de cabelo quase a pingar – e
não, nunca por isso me constipei – e vou às compras (compras à sexta aborrecem-me,
encontro sempre gente conhecida e ando meia arredia de conversa mole). Demora. Enreda.
Desinteressa.
Em
casa, verifico o chão que a gata estragou e tentei restaurar durante a manhã.
Não está bem. Volto à cera e faz-se tarde para as minhas horas em casa de meu
pai (que deviam ter sido ontem, mas foi impossível).
Na
casa paterna, começo por cirandar no pomar a encher sacos de laranjas. E depois,
o trabalho espera. Com meu pai a perorar de quando em vez: deixa isso, eu faço
isso com a esfregona e fica bem lavado, para que andas de rabo no ar, esfregão
verde e lexívia. Não me dou ao trabalho de responder. E nem posso parar que há
muito por onde e as horas correm. Termino já depois das dezanove (dou por terminado, que não é
exactamente a mesma coisa). Ele acendeu a lareira e
resmunga da sala, a tua irmã é que faz bem, não põe aqui os pés. Ignoro. Largo
o avental, enfio um casaco, enfio no saco o material para lavar em minha casa,
fecho portas, mudo a chave para o lado de dentro, dou uma vista de olhos ainda
assim alguma coisa fora do lugar. E rumo a casa pensando que fiz bem em colher primeiro as laranjas.
Arrumo
o carro e a gata vem pedir a janta – tem razão, passa da hora. Depois de almoçar
numa fona e saltar o lanche, também eu esfomeei. Mas há ainda a roupa e tapetes
por apanhar, a lenha para a salamandra, as janelas de olho aberto, o diabo a
sete. Atendo a gata e decido jantar antes que me dê uma coisinha má. Só depois
trato de acender a salamandra. Numa das viagens ao quintal escorrego num
plástico e caio de joelhos no cimento. Vá lá, não foi pior. Depois, sento-me a olhar as
chamas. Invade-me um cansaço cilíndrico, denso e volumoso. Sinto-me imprestável, confrange-me
pensar no tricot. Talvez ver um episódio de uma série televisiva. Experimento,
grande parte passa sem registo, dói-me tudo. Ponho hirudoid nos joelhos e subo.
Neste momento, quase passou. Talvez tenha sono.
Oh!
As alegres sextas feiras.
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