Sem dar conta, perseverava no hábito de me tomar como prioridade. Mais do
que por ti, as lágrimas lamentavam o sonho desfeito e a tristeza eclodia
sobretudo pela mudança de registo na vida, a dor a atingir-me até aos cantos
mais escusos da vaidade. E nem poderia ser de outra forma, única filha de gente
que tinha de seu, educação esmerada, casamento condigno. É quase paradoxal, filha,
mas foste o descalabro e também a via que me conduziu. Não que a
tenha desejado. Ignorante, julgava possuir-me nesse esforço da vontade que era
afinal a posse do que estava fora de mim. Mas a vida de
cada homem tece-se mais nos improvisos de acaso que nas deliberações racionais
e programadas. Contudo, até nasceres, julgava submetê-la à vontade. Guiada por
uma ingenuidade com toques de existencialismo, fazia da vida o amante soberbo
que comungava dos meus gostos e eu comandava de peito feito, ao volante do
querer. Tinha consciência da morte mas, no campo hipotético que então gozava –
os jovens vivem num imenso campo de hipóteses -, sentia-me infinita e
omnipotente, a morte um ser longínquo e atávico, certeza última e muito aquém do futuro inexcedível que me aguardava. Nenhuma tropelia do acaso parecia suficiente para desmerecer ou inibir as minhas determinações. Era
saudável e bem nascida, razoavelmente bonita e inteligente; teimei em estudar e
ter uma profissão que me assegurava o futuro, decisão que meus pais desdenhavam,
mulheres de bem têm o mundo de sua casa, não se sujeitam a horários e patrões
desumanos de que tu podes prescindir. A adensar o mau gosto, recusei ser
professora ou médica, situação profissional que, com relutância, admitiam
servir melhor a condição feminina. Espicaçada pelos torneados que a lei
permitia, atraía-me o Direito e suas ratoeiras legais. Os teus avós, vindos de
um tempo de fortunas sólidas e ambientes onde a cultura era quase propriedade exclusiva do reino macho, tomaram o meu entusiasmo por snobismo volátil, ainda
que minha mãe, exalando vaidade pesarosa, suspirasse às amigas nas longas
tardes de canasta e bolinhos folhados, é capricho e acinte contra nós, a filha desiste
a meio do ano. Não desisti.
O curso não me trouxe apenas a profissão remunerada e a independência de
penates, desenvolveu também um lado belicista que se comprazia a esgrimir
argumentos irresistíveis. Surpresa, assistia à eclosão dessa
mulher arguta e impiedosa, capaz de se
demorar madrugada fora no esquisso de uma defesa ou acusação de que retirava
lúdico prazer. Foi nesse trâmite de omnipotência juvenil que conheci teu pai. Um
amor relâmpago, de tudo certo. De um lado e outro, as famílias apadrinharam a escolha. Um juiz e uma advogada. E lá vieram de novo as benesses que a nós dois
pouco diziam, boas famílias, bens
materiais, um parzinho romântico muito aceitável. Daí ao casamento, foi uma
revoada de coisas novas: casa a ser construída na cidade, dois pisos com jardim
e garagem que requeriam empregada privada; e a preparação da cerimónia onde eu me
cingia a palpites coloridos, a mãe um fiscal derramado sobre os detalhes. No zelo da paixão, pormenorizava-me a conhecer teu pai, a
aprender-lhe cheiros e gestos, modos de olhar e andar, ternuras e arroubos
masculinos que desconhecia e, deliciosos, me incendiavam os lugares mais estranhos, coração quase a descompactar de tão saliente.
O mundo de teus avós pouco me ensinara do amor, dois seres cerimoniosos
e pouco efusivos, precatando-se de qualquer manifestação pública de ternura. Em
suma, encantei demoradamente no primeiro espécime masculino que se achegou em
admiração de amor deslumbrado. Dançámos namoro fora, aplaudidos por amigos e
conhecidos. Feitos um para o outro, texto e panela a revolutearem de salão em
salão. Pés e coração em uníssono, ao ritmo da música. Sem outras contendas que
as da profissão.
Rodeados de prendas e bençãos,
casámos.
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