Vários
meses a passear-te dentro de mim. E sempre a promessa de voltarmos as duas mais
tarde, num dia claro, imaginando-te a inquietação dos olhos a um lado e a
outro, em absorção total. Mas a tua realidade adversa levava-me a evitar
olhares debruçados e estranhos que tomava por indiscretos, espontâneos
pesares que me rasgavam pele, lamentos de estupor laminado a esfacelar-me o
ânimo. A curiosidade geral, acesa pelo diz que diz, fazia-nos parar o carrinho
a cada passo. Mas, “ver a menina”, destilava um incómodo de silêncio estupefacto que, de um
lado ou do outro, rompia por uma pressa de compras e almoço, um lugar onde ir,
a batida em retirada. E teu pai retraíu, vai tu com ela, não aguento mais. No
lar, insolventes gavetas de cómoda luziam nuvens e laços que nunca
usaste, nada te servia. Por vezes, o meu desgosto mergulhava as mãos no veludo
dos chambres, descia à maciez dos casaquinhos, abstraía nas touquinhas breves e
floridas. Depois, cegava enraivado, dedos em garra a torcer tudo, laços
desmanchados, o redondo rigoroso das écharpes a pingar, sapatos e botinhas
esventrados.
O
desgosto é capsular, cria distância. Dentro dele, obscurecemos. No olho do furacão, o acontecer alheio desmaia, des-existe. Daí que a minha memória
de teu pai seja escassa. Inteira a meu cuidado, cabia-lhe o
caminho de médicos e hospitais. Perdíamo-nos um do outro gota a gota, bonecos sugados pela desgraça. Fustigados pelo temporal, éramos duas árvores
resistentes no cimo do morro. No entanto, vejo a sua mão precisa a
encontrar a minha, um saco de boca aberta frente à cómoda, não podes continuar
assim, esvazia o armário, dá tudo isso; compramos novas roupas, fazemos outro
enxoval, oferece este a alguém precisado.
Revoltei-me.
Chorei. Barafustei. E dei tudo, filha. Depois comprei máquina de costura,
chamei a modista a casa e ela talhou e coseu, peça a peça, o que precisavas.
Os laços não te brilharam, mas usaste-os; as botas não eram miniaturas,
mas calçaste-as; os chambres bordados não te assentavam, mas havia que
vestir-te alguma coisa. Na rua, já ninguém me parava para te olhar. Mas, nas
minhas costas, como bocas de mil dentes
a abocanhar-me, escapavam-se cicios mórbidos lá vai o
bebé-bicho, diz quem viu que tem focinho em vez de cara, coitadinha dela e mais
de quem a tem. E benziam-se enquanto eu passava, olímpica, a fazer de conta que
não tinha ouvido mas ainda a escutar, achas que ela ouviu.
E
os médicos, parece que com a mente está tudo bem, mas convém deixar passar uns
meses. A essa altura, juro-te, filha, tinha consciência
que nos entendíamos e eras inteligente. Mas talvez essa certeza intuída fosse
mais um fardo. Que não pensei. Umbiguista, julguei poder ensinar-te algumas coisas, conversar, brincar, passear.
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