Há dias em que um homem se sente estranho e invisível na sua própria casa.
Deita-se na mesma cama com a mesma mulher, a casa de banho habitada por after
shave e colónia; o pequeno almoço aguarda no mesmo canto da mesa; junto à porta,
os objectos pessoais, casaco, pasta, óculos de sol esperam ordenados. E ainda assim é como se a
casa não me pertença, tenha um ritmo alheio, os objectos cativos a
murmurar de viés, este outra vez.
Sinto-lhes o mau estar desde o bater da porta na entrada, parece-me que mal me
sofrem os passos, como se os espezinhasse, eu que me desloco sem ruído desde
criança, a proibição de minha mãe ainda nos ouvidos, o menino não pode correr
dentro de casa, a enxaqueca da mamã não tolera barulhos. E as empregadas como
gatos, a deslocarem-se em sapato de lona. O papá em bicos de pés, eu de soquete
branco por muito ano. E a doce mamã mergulhada em penumbra. Acudíamos-lhe ao quarto por um ai mais
demorado; a nitidez de uma queixa, hoje nem consigo abrir os olhos; um pedido
de doente mimada, ai como me apetece o cheiro das tangerinas. E logo meu pai pressuroso pegava em bengala e chapéu e desencantava em qualquer tempo as tangerinas de Janeiro.
Que a empregada trazia numa bandeja e ela descascava com prazer, a exclamar
extasiada, cheiro tão bom. Pouco depois enfastiava, dedos nervosos e odoríficos na
campainha a retinir, leve, leve, atire fora. E enquanto expulsava das mãos o
ácido ascórbico, a lona atarefava em pressas de veludo no sentido da cozinha,
vamos comê-las que já estão descascadas. E eu em contemplação, encostado no umbral.
Curioso de lugar tão diferente. Comer
tangerinas despia-as de função. Retomavam o corpo sem pose com que tinham
chegado até nós, riam umas com as outras, brincavam. Naquele bocadinho de tempo
eram quase tão garotas como eu, o menino não diz nada, pois não, quer um
gominho. E eu importante como um confrade, a mastigar os gomos que me passavam,
a sentir na boca o sumo doce , a fazer parte
do segredo que vingava naquele reino de ruído caseiro, mescla de cheiros e
compostos que acordavam ao calor. Além delas, havia a cozinheira de mãos largas
e colher de pau, que me chamava prolongando-se em doces que descobria não sei
onde, coma tudo aqui senão o senhor doutor ainda me despede. Quando recebíamos,
meu pai apontava-me às visitas, o
carácter não pode ser amolecido com açúcares, o Alberto é criado sem tal veneno. Olhem para ele, nem
parece filho da pobre Madalena. E vários
pares de olhos avaliavam resultados,
cabeça acima e abaixo, bocas a bichanar aprovações. E ainda hoje engulo a sobremesa, minha mulher a princípio estranha, que pressa é essa, o
que lhe deu. E eu de afogadilho, não sei, sabem melhor assim. E nela só a sobrancelha
delicada, nem demasiado espessa nem demasiado fina, a alarmar. Mas de que serve
saber, explicar-lhe demora tempo e não muda nada. É que só na cozinha pacifico
com os doces. Habituada ao desvario e tão velha como nós, a empregada deixa ouvir no levantar
da mesa, os restos ficam no frigorífico.
E quando fecha a luz da cozinha, prato e talher esperam-me na bancada. Se não
foras tu e o mundo da cozinha a prender-me, teria por certo evaporado. Que não
sei como aguentar salas cheias de candeeiros e agudos de mesa, cadeiras
empertigadas, sofás que nos encurvam e sepultam, écrans cheios de mundo em
desfile patético e que não interessa nem ao Menino Jesus. De resto, o que pode
acontecer de verdadeiro numa sala, filha. Ali, imperam reposteiros e cortinados, quilómetros de linho e seda a velar
a crueza dos dias solares. Também a guardar-nos de mirones. As salas são fatídicos lugares de morrer aos
poucos. Não foi lá que deste os primeiros passos soltos, perninha bamba que
primeiro hesitava em tem-te não caias e depois corria até aos meus braços
risonhos; não foi lugar do teu parque, ou a Olímpia não teria hipótese de te
verificar; e nem a aranha que te amparou a pressa das pernas alguma vez por lá
passou. Bem sei, não é o teu lugar
preferido. Afirmavas convicta, a sala é para as visitas e não gosto que haja visitas.
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