Não
se sabe por que tanto pesa o que sempre nos pesa apesar dos momentos em que
parece mais leve. Mas pertence ao viver que cada hora seja uma e nada se saiba
da próxima ou de quando a última nos visita. Em tempos, li num livro de Savater
que o autor criou consciência da sua própria morte aos nove anos. Pois
fartou-se a minha infância de observar monótonos funerais a subir a ladeira e a
morte continuou-me do lado de lá. Jamais a julguei minha ou dos meus, a família
era eterna. Na catequese, o padre assegurava outra vida, um céu para a gente
boa e que me surgia completamente desnecessário. Se nenhum de nós morria, tal
mundo não me beliscava, era-me arredio. Resumindo, mantive-me eterna até meio
da adolescência, época em que a mortalidade foi espinho que enterrou.
Afinal, o meu mundo pequeno comungava da duração limitada. E veio toda esta conversa a propósito de meu
pai e da sua provecta idade: oitenta e cinco anos. Se o visito, não falamos da
morte – da sua –, mas pergunto-me muita vez como será que a entende. Acreditar
na imortalidade é crença que descarto, nunca foi religioso ou quimérico. Está pois ciente de ser coisa
próxima. E, quanto mais envelhece, mais se enche de projectos e compras. Não o
visito sem haver algo novo e por estrear. Compras feitas aos pares e à meia
dúzia. Não há armários onde guardar tanta roupa, abafos, sapatos, bonés, meias
que saltitam como embalagens de ovos, em quantidade. Por ora, virou-se para os
utensílios domésticos que exibe com a grandeza de um magnata perdulário. Ele
são novos tachos e panelas, uma pá supersónica, um par de vassouras, uma altura
de panos de cozinha. E depois vem-lhe aquele entusiasmo genuíno por uma
frigideira, assim como quem apresenta as qualidades do seu novo Mercedes. Que
nada se lhe pega – e passa um dedo pelo fundo anti aderente -, que se lava
enquanto o diabo esfrega um olho e não mascarra. Guarda o melhor para o
final: que, ao contrário das nossas compras – nós, os filhos, nunca soubemos
comprar - foi muito mais barata do que
as que aparecem nos anúncios da TV. E volta a alojá-la no armário como guarda-jóias carregadinho de valores.
Qualquer
desistente da vida devia visitar meu pai. Para ler o jornal, desloca-se até ao
café diariamente, na bicicleta de senhora que adquiriu para esse fim, dado já
quase não conseguir a marcha. Diverte-se a fazer compras no super e mostra-me
com orgulho os bons artigos que trouxe para casa. Repete, diário, a sua
ginástica matinal e garante que, sem ela, já os músculos teriam petrificado.
Sente enorme prazer a confeccionar as refeições, destiná-las, saboreá-las. E
tudo de acordo com os conselhos médicos. Nos domingos, empapoila-se e almoça
fora. Sozinho. Jamais convida filhos ou netos e apenas nos visita por
obrigações de doença nossa. A sua maior glória é a suada independência do dia a dia.