As crianças
aprimoram a inocência do sono. Flores em sua natureza, dormem sem mágoa.
Arrumam os problemas sobre a mesa-de-cabeceira como os velhotes a dentadura, e
dormem. Os seus mas de criança aos suspiros pequenos de, ai, que aborrecimento estar assim dobradinho, e elas a sono solto. Assim
comigo. Adormeci pacífica, sem sobressaltos. E nem sonhei com bicicletas.
Mas na manhã
seguinte, ainda o corpo a juntar-se, um ardor na mão direita. Palpei. Uma
bolha. Que doía em escrupulosa nitidez. Não sonhava, portanto. Lembro-me da
claridade insidiosa, a escapar da janela
fechada como que a dar-lhe um chega para lá, deixa passar faz favor que é tempo, e eu a olhar os retalhos de luz e a
pensar, onde é que arranjei esta bolha
(não pensava bolha, pensava borrega). E não me ocorria. O óbvio não entra em
mim como tal; e muito menos ao acordar. Portanto, levantei-me e fui perguntar à
minha mãe. Talvez ela me iluminasse o mistério. Da borrega. Eu. Que até já
tinha a 4ª classe.
Cheguei à
cozinha de palma estendida, ó mãe, olhe
lá para isto, tenho aqui uma borrega, não sei onde é que a fiz. E antes que
ela respondesse, a verdade caiu-me em cima e, foi da bicicleta. Uma pedrada. O súbito da descoberta trouxe-me o
filme todo e abafou o completo de mim.
Depois do
pequeno-almoço, cirandei por ali em espreitadelas de trovoada ambivalente a
desabar na bicicleta. Até que tomei coragem e a levei para a descida. Repeti
mais ou menos o dia anterior, acrescentado do rotundo êxito com as bolhas. Mãos
de cavador em estreia. À hora do almoço, já tinha três na mão direita e duas na
esquerda, ponderava usar as luvas de inverno, amaldiçoava o guiador – ele é que
era muito áspero - e mantinha o meu record: dois metros. Maravilha.
O pior foi que
o meu pai veio almoçar. Gargalhou das minhas bolhas, chegou mesmo ao cúmulo de
dizer que ninguém as fazia a aprender a andar de bicicleta senão eu, mandou-me
experimentar e caí mal pus os pés nos pedais. Ele gritou um montão de coisas
que não me lembro, mas foram muitas e não muito boas, e eu desatei a chorar e a
falar chorando que é uma coisa que não aconselho a ninguém, mas toda a gente
experimenta não sei porquê, que dá muito mau aspecto. O mais péssimo, foi ouvir
o ultimato. Curiosamente, em tom menos estridente, talvez até
um pouco desanimado, Se ao fim dos três
dias não aprenderes a andar, entrego a bicicleta ao homem, ouviste? Tens até
amanhã à tarde. E zundapeou.
Aflição. Mas a
parca ideia que me surgiu foi mudar o lugar das aterragens. Fui para a estrada,
floreado para azinhaga de terra batida. De luvas, com o artelho todo
armadilhado e só com uma peúga calçada a segurar um super penso, lá me dispus a
prosseguir. Ora, ao lado da estrada havia a vala onde corria a água no inverno
e que o meu pai tinha mandado afundar nesse ano. Completamente escondida pelas
ervas de Verão, crescidas de um lado e outro. E é claro que eu nem fazia
ideia da sua existência. E que caí lá dentro às guinadas, enquanto olhava para
os pés, a contrariar o código. Devo ter batido com a cabeça em algum pau ou raíz,
ou serei mesmo de cabeça mole. Desmaiei. A boa da vala, braços abertos,
venham cá. E rápida nos guardou.
Desconheço quanto tempo lá permaneci. Quando acordei, pensei que, ou sonhava,
ou tinha morrido e acordado no caixão, facto que bastante me assustava. Tratei
de respirar com muita força. Se estivesse num caixão gastava o ar, morria de
novo e pronto. Mas não senti falta de ar. Portanto, arrisquei abrir os olhos já
que quase não conseguia mexer-me. Também não sonhava. Sobre mim havia alguma coisa a pesar e depois
uma tampa móvel, que se deslocava um tudo-nada de quando em vez e clareava o
lugar que nesses instantes me surgia verde. Pensei que os olhos estivessem esquisitos. Desentalei os braços que entretanto achei e afinal
estavam vivos. E empurrei. Espantada até ao âmago do agradável, senti-os em
leveza de movimento. Sem esforço. Que logo me
lembrou o abre-te sésamo de Ali babá. Já eu entrava na senda mágica quando entendi: estava
algures dentro do estreito de uma vala e a minha tampa móvel que verdejava era o entrelace de ervas muito
altas que tremiam na brisa do estio, arrepiadas de gosto, hummmm, passa de novo. Portanto, não saíra da realidade. Palpei as pernas e senti a
roda da bicicleta. É que ainda hoje não me lembro de ter caído. Gritei. E
ninguém veio. Gritei de novo. Nada. Então, fiquei a ganhar alento para sair dali
e aproveitei para pensar na vida. A bicicleta não se queixou.
Fez-me bem ter
caído. E ninguém a acudir. Deu-me o tempo de olhar, vendo. As crianças pensam
simples e fácil: tinha de pedir ajuda; a alguém que soubesse bicicletar; não me
ralhasse; e fosse da minha idade. Só assim conseguiria aprender.
Depois destas maduras reflexões,
criei força, afastei a bicicleta como pude e saí em viagem de reconhecimento. As
minhas irmãs vieram a correr, tiveste uma
visita mas não sabíamos de ti, onde é que tu andavas? E eu, por aí. Elas de novo, era o senhor Padre
Nunes. Eu a pensar, ainda bem que ninguém me encontrou, aquele padre leva o
tempo a dizer que sou santa. E nem sabe o que me assusta. Indubitável, o dia estava um
exagero comigo, precisava descansar. Na chaise longue de um romance.
Atirei-me com alma para dentro de um livro e deixei o
resto para quando.
É um bálsamo para o espírito ler um a história assim depois de um dia intenso de trabalho. Está aqui a começar uma chaise longue.
ResponderEliminarZundapear e bicicletar....que imaginação brilhante que se destaca aqui.
Muito obrigada, marca das palavras :) ah, ah, ah...sou bem mais prosaica do que imaginas; não é imaginação brilhante, é que não me apeteciam repetições nem ir ao dicionário para experimentar outras :) estas de certeza não repetia :)
ResponderEliminarSe te fiz bem ao espírito...já vale o que escrevi.