O que sei desta escritora que recusava sê-lo é quase nada. Li-lhe o nome
pela primeira vez na FNAC. E admirei-lhe o exótico do rosto, a estranheza do
olhar, a perfeita linha da boca. E mais me disse o nome que o resto. Porém, sou
avessa a novidades. E tudo nela me pareceu misterioso. Deixei para quando.
Mas as ideias seguem, felizmente, uma linha indómita. Nós distraídos e
elas a trabalhar-nos a vontade. Minam-nos. E nós em solilóquio, qual escritora? Já não me lembro, esqueci,
não tem importância. E seguimos. Compramos outros livros. Vivemos…
Uma tarde, um título a acenar-me da
estante, um dedo de letras em riste, lê-me.
Obedeci. Tem vezes que sou obediente; e não gosto de contrariar livros,
acredito neles a pés juntos. Era “A maçã no escuro”. Imaginei uma maçã listada
e vermelhinha e logo desfiz o imaginado; no escuro, nenhuma dessas
características existe. No escuro, a maçã é maçã pelo cheiro, pelo gosto e pelo
tacto. E o título passou a intrigar-me. Não era já a vulgar linguagem do
desejo, mas o peso da escuridão no fruto. Li uma ou duas páginas e notei-lhe
uma pureza e cuidado invulgares, espécie de amor respeitoso pelas palavras. Que
me Convenceu.
Comprei aquele bocadinho de Clarice e andei com ele por vários lugares. A
lê-la. E confirmei, é uma mulher enigmática, aforística, com uma realidade interna
tão furacão que o mundo a que chamamos real desimporta, esvanece. O mundo dela
é pouco igual ao de toda a gente e a sua hiper-realidade entra em osmose com
ele e domina-o. Escreve em loucura mansa que me lembra a poesia. E também por
isso a comprei. Nada sei dos estados de alma que a levavam à escrita. Mas, do
que li, me parece possuída, embrenhada numa teia que tudo envolve. Entendo que
os franceses não gostem de lê-la - há-de haver mais gente -, não creio que seja
escritora de massas. Ainda hoje não terminei “A maçã no escuro”, cujo já supus
chamar-se “O sabor da maçã”. Quando arrumei o livro pensei “que mulher com uma
escrita tão boa e tão difícil”. E fui correndo no tempo. Que somos nós quem
nele corre, a gastar-nos sempre; des-pensamos disso, mas vamo-nos rasgando
pedaços, que não podemos retomar. Dizem os cientistas que a velhice é efeito da
força da gravidade no nosso corpo perecível. Mas envelhecer é o cansaço vital.
Pouco importa se fazemos bem ou mal, pouco ou muito, depressa ou devagar. É preciso
compreender: não deixamos as marcas dos pés, deixamo-nos. E esta verdade é tão
irrevogável como bela. De uma beleza irrestrita, comovente. Viva.
E um dia a minha irmã a olhar o rosto de Clarice, “Esta sou eu” e eu
logo, toda óbvia, não não, é a Clarice
Lispector. E ela no peremptório de si, quero
lá saber, esta mulher é igual a mim, eu olho assim e tudo; portanto, sou eu. E
Isabel Allende acendeu-se-me na memória, A
minha família, depois de “A Casa dos Espíritos” ter passado a filme, substituiu
o retrato do meu avô pelo de Jeremy Irons. Ele é muito mais bonito, fica melhor
em cima do piano da sala. Olho melhor e noto. A minha irmã tem razão, são parecidas, têm o mesmo olhar estranho, em tristeza e desafio, as maçãs do rosto altas, um delineado
semelhante dos lábios. Também por isso, comprei outro livro, “Laços de Família”,
que bisa as primeiras impressões. E fui visita na exposição da Gulbenkian Clarice
Lispector, A Hora Da Estrela.
Decepção. Não é admissível que haja uma exposição sobre um escritor – ela
não queria, mas era escritora, sim –, sem livros. Livros verdadeiros. Capas.
Folhas. Letra de forma. Lugares onde passemos os dedos e demoremos a mente. Está
certo, a senhora era meio misteriosa, o nome de estrela quadra-lhe, mas é demasiada
escuridão e tristeza pespegar apenas umas frases.
Na exposição sobre Pessoa havia
uma mesa enorme com livros que escreveu ou revistas em que participou e uma sala com pormenores biográficos. Como é
que se organiza uma exposição sobre Clarice e nem um artigo seu para os
jornais? Os jornais onde estão que os não vi. Deveriam estar todos ou a
maioria. Que é dos contos que publicava quando jovem? Quando é que esta gente
se lembra que a música pode ser hipótese… Onde as fotos familiares, os
dados biográficos…A exposição vive do seu rosto de ucraniana jovem a lembrar
uma actriz de Hollywood. E da repetição de algumas frases. Insinuantes.
Escolhidas. E, na última sala, o vídeo da sua entrevista.
A ENTREVISTA, a única a que anuiu - não gostava de ser pública. E VALE. É
de 1977 e tinha 57 anos. Lamento que lhe tenham retirado as perguntas. Mas de
todo o modo, aprende-se nela. E conquista.
Poderei eu não ter visto a exposição toda?! Comigo, também isso é
possível. E preferível.
Deu-me grande prazer aquele bocadinho em que estive a sós com Clarice
Lispector ela mesma. É uma senhora.
“Quando não escrevo, estou morta, mas precisa um esvaziamento da cabeça
para renascer.(…) Agora estou morta, não sei se vou renascer.” (um pedacinho da
entrevista:)
Oh! D. Clarice! A senhora renasce de cada vez que alguém a Lê. Com o
inteiro da alma.
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