Há pessoas a quem a pressa levanta um imediato desacato de vísceras que
só empata; as que coagulam, inertes; as que atoleimam e se perdem em perguntas
tolas. E mais. A minha mãe pertencia às primeiras, eu às segundas, a minha tia,
banhada em sorriso e sangue frio, a nenhuma delas. Entretanto, a nossa vizinha desaparecera e o automóvel com
matrícula francesa subia lentamente até ao monte.
E eu numa angústia, o que é que faço?
A minha tia, lógica, o que é que fazes?
Vais atendê-los, filha; falas com eles. Só tu é que sabes francês. E a
minha mãe em corujinha pressa a impelir-me, o calor das mãos a repassar cuidados nas minhas costas, não podes ir assim, o vestido quase não te
serve, veste outra coisa. Dei um passo e logo ouvimos bater na porta da
frente. Parámos. Então, a minha tia empurrou-me para o corredor, ó filha vai assim, qual é o mal? E logo a minha mãe a abrir a porta
do quarto, enervada de dedos, um leve rubor de autoridade no meio tom abafado em
que a voz lhe saiu, Beatriz, veste outra
roupa, o vestido não te serve; está todo desabotoado à frente. E antes que eu
entrasse, a mão da minha tia a insistir-me na omoplata, uma leve pressão em direcção
à porta da rua, ó filha estás boa, mais
botão menos botão, deixa lá a roupa, vai mas é abrir a porta. E ficámos as
três do lado de dentro, a porta a separar-nos das silhuetas no postigo, perfis selados de carta gigante. Cada uma puxava-me e empurrava em sentido
contrário. Para desempatar, entrei no quarto, vesti à pressa outro vestido, a
minha mãe e a minha tia eclipsaram e abri a porta.
Deparei com quatro ou cinco gigantes, todos jovens e com ar de
quem viera a pé desde Braga. Soube mais tarde que tinham palmilhado cinco
quilómetros por desconhecimento do espírito alentejano, que situa tudo “já ali”. Apresentámo-nos meio envergonhados, chamaram os pais que continuavam no carro e
fomos para a sala. Sentaram-se à vez, que não havia cadeiras para todos. De
imediato, gostei dos pais da Bernardette. E dela. A foto não dizia a doçura
daquele olhar azul. Um dos irmãos era já estudante universitário e vinha
acompanhado da namorada, facto que me deixou étonnée; os namoros que conhecia não tinham tal liberdade. Não
esqueço os seus olhos de troça enquanto me dizia, um dedo cheio de tiques,
quase a furar o papel, vous n’avez pas
ça, vous n’avez pas le droit. E agitava-me um jornal em que Charles de
Gaulle estava sem cuecas e a mostrar o traseiro. Pareceu-me mau gosto um presidente
escarrapachar-se num jornal, a toda a página, de calças na mão; e não ardi de
simpatia por quem me mostrou tal imagem como se fosse grande coisa. No meu
íntimo, duvidei mesmo do juízo do presidente francês. Jamais Marcelo Caetano Ou
Américo Tomaz o fariam. Só Abril de 74 me deu a hipótese de entender a foto e o
jovem. E bem mereci o esgar trocista com que então me brindou ao ver que não o
entendia de todo. Entretanto, o assunto esgotava-se, eles estavam visivelmente
cansados e encetavam conversas em surdina que me alteravam o conforto. Para renovar o ambiente, resolvi
apresentá-los a minha mãe e tia e levei-os à cozinha grande.
A boa disposição da minha tia era à prova de bala. Enquanto a mãe
se limitou a beijá-los um a um, sem uma palavra e bastante enleada, a irmã começou por, com olhos inocentes de que devia ter desconfiado, me pedir que lhes perguntasse se entendiam ou falavam alguma coisa de
português. À resposta de que apenas conheciam obrigado e se faz favor, tirou
desforra. Cumprimentava a Bernardette e dizia com um sorriso impecável e
acolhedor, sua desgraçada! Diz que vem
num dia e vem no outro. Ai filha, que
gorda que ela é! Não podias ter arranjado uma amiga mais magra? Beijava o
universitário e, rindo para ele desvanecida, logo vi, este é que era bom para ti, bonito, magro, mas já traz a
serigaita atrás, ó filha muda mas é de correspondente; se quiseres, a tia
envenena a namorada. Quando beijou os dois gémeos, com ar muito inocente, a gente já cá tem pouco gaiato, vêm mais estes;
ai que gordos que eles são, se caem em cima de algum dos nossos,
esborracham-no. O que dá a gente de comer a esta cambada toda? E muito
afável a beijar a irmã mais nova da Bernardette, mais outra? E gorda. Olha para estas pernas. Mas o engraçado foi
enquanto beijava os senhores, Então mas
esta gente não ouviu falar da pílula?! Ranhosos, estes é que são os culpados,
filha; deviam era ser presos. E agora eu que me mate a trabalhar para eles. Ria-se
para todos muito simpática e dizia-me, ó
filha tu tira estes desgraçados todos da minha frente que ainda tenho de lhes
dar jantar. Leva-os para bem longe que temos de ter tempo para fazer outro jantar.
Senão dou uma sova a cada um e ficam jantados. Tira-me esta corja daqui. Tudo isto olhos nos olhos, em voz maviosa e no tom doce e cordato de quem assume a beleza do crepúsculo. A minha mãe, que era
um passarinho tímido, não conseguia parar de sorrir e eu custava a dar conta de
mim. Apresentava-os um a um enquanto ia ouvindo os dichotes; e
de vez em quando escapava-se-me uma gargalhada pequenina que punha os franceses de orelha
em pé, a olharem para os calções, para os ténis e etc., na suspeita de rirmos
deles. Esta atitude acicatava a provocadora da minha tia que mais lhes jurava pela
pele, tira-me
daqui estes estafermos estuporados senão ainda dou um pontapé no cu de algum
que vai a rebolar até à cova. Muito educados, muito educados! Não têm vergonha
de se apresentar na casa de uma pessoa com tanta gente. Nem eu que não estudei,
fazia uma destas. E ainda por cima vêm um dia antes, deviam estar com medo que a
gente fugisse. Mas, mal eu fervia o riso, por baixo da voz dela, a minha
mãe era água calma e fresca, Beatriz… Beatriz…
e creio que assim me salvou de rebentar às
gargalhadas. Convidei-os para jantar e eles, mais non... mais non…beaucoup de personnes… E aceitaram contentes.
Como tinha de os tirar de casa e ignorava os quilómetros palmilhados, propus-me
mostrar-lhes a minha terra – que na verdade nada tem para ver. Eles, desanimadíssimos.
Bem o notei. Mas até o meu pai obedecia à cunhada.
Já nós na rua, chegam os meus irmãos e os meus primos. E logo um foco de atenção. Abandonados a si mesmos, tinham subido aos
pinheiros, tirado os pinhões e como a fome apertava, partiram-nos e comeram-nos
todos. E, quando a tardinha presente, resolveram voltar. Sem nada.
Pareciam palhaços ou ciganos. Todos traziam uma boca preta extra a circundar a verdadeira, cheia de veios negros. A sujidade de roupa e corpo era uniforme e
constante. As minhas irmãs escondiam sem sucesso as bainhas dos vestidos deitadas abaixo de se
encavalitarem nos pinheiros; e o meu primo tinha caído sobre um vaso de resina e
estava uma lástima peganhenta, as mãos coladas aos braços do meu irmãozito que viajava às cavalitas, pézitos inquietos de satisfação. Vinham desgrenhados e com carumas nos
cabelos. Logo rodearam os franceses de afável curiosidade e envolveram-nos de largos sorrisos de boca
dupla e dentes crivados da pele fina e alaranjada dos pinhões. Contentes das
visitas até mais não poder.
Penso que os franceses nunca tinham visto um grupo assim. Era um conjunto
notável. De que não me lembrei de me envergonhar senão nos primeiros segundos: os garotos estavam cómicos e tão contentes
que não havia como ralhar-lhes.
O naipe francês, petrificado. Mudo e quedo. E quando eu comecei, mon frére, ma soeur, ma cousine,…. O queixo descaiu-lhes
involuntário.
O que pensaria
aquela gente de nós?
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