Escrever cartas é mister que falsamente nos aproxima de alguém
desconhecido. Foi assim que aconteceu connosco. Sabíamo-nos das palavras. Eu,
de horas a dicionário e discurso de mau francês, que sempre fui de me distrair
a escrever – palavrosa e ficando a pensar no que rodeia a escrita, no que não se
diz por não vir a propósito, mas se pensa na mesma, no que se gostaria de
contar mas sai mal ou não sai, coisas assim que me tomam ainda hoje em correio
escrito, vulgo mails. Quando nos
encontrámos frente a frente, todo esse tempo de epístola se fez inútil, retraídas
de um primeiro encontro e tão sem palavras como duas completíssimas estranhas. Bernardette era uma tímida taciturna, a vozita a desaparecer na exuberância do corpo, peço
desculpa. E não foi a língua o que nos separou, fui eu que não consegui
entendê-la no seu ser diverso. Tinha-a como certeza dentro do meu pequeno
círculo. Mas ninguém nos é certo, o meu círculo não era o mundo e as pessoas não
são iguais ao que delas pensamos. A minha experiência de garotas palradoras
fez-me supor que a norma fosse falar pelos cotovelos. Conhecia uma que falava pouco, anomalia que prontamente
atribuí ao facto de não conseguir cantar;
e logo a julguei exemplar único. As mãos da irmã directora a imobilizarem sobre
as teclas, em amplidão de desconcerto, “filha, quem desafina canta, e não te
sai uma nota”. A miúda a desfiar as canções num tom neutro e sempre igual. A
irmã directora toda manobras de investigação, vamos à escala, e ela átona, a
enunciar as notas com a indiferença de quem está farto de contar até dez. Hoje
julgo que se mascarou de indiferente para aguentar o exame a que a turma
assistiu; e que fui perversa tanta vez, canta lá “Minhas botas velhas cardadas”, para verificar sempre a mesma invariância. Porém, na altura, à vista do
fenómeno, atonitei – o que é frequente, não me passa – é que não me ocorrera
que houvesse alguém que fosse incapaz de cantar, que nem uma nota entoasse. No
tal mundo em que vivia, toda a gente cantarolava, os tios os primos, a mãe… Selectivo,
o meu pai só cantava na taberna. O balcão corrido, o cheiro a vinho barato no
meio da vozearia e os copos de cinco e de dez davam-lhe uma alegria nunca vista;
ainda eu vinha lá em cima à curva e já o ouvia cá em baixo, “ó Rita
arredonda a saia…”. Portanto, não me tinha armado para fazer ricochete numa
timidez silenciosa. Mas foi o que aconteceu.
No passeio pela aldeia, a escola primária, o adro da igreja, a estação
dos comboios, eram irrisórios aos olhos viajantes. A rematar, conduzi-os por
vereda estreita até à fonte, lugar ermo e sem outra luz que a do luar. Era o
sítio preferido de todas as crianças da aldeia. Porém, os franceses não eram
crianças e nem tinham a fonte na memória. Ali, nada os ligava a nada. Na bica, escorria um
fio delgado que embalava a calma da cisterna com a sua cantiga e se perdia na terra empapada. Os franceses, vítimas da ingenuidade
alentejana, tinham percorrido vários quilómetros a pé, estavam cansados e
desiludidos (só hoje me apercebo). Mas cumpri: a lua já ia alta quando
regressámos a casa.
Entrei a espreitar a sala. Estava pronta para a refeição. A minha mãe devia
ter requisitado as cadeiras todas do monte e imaginei os vizinhos a jantar
sentadinhos nos moxos, o queixo num desabafo, a aflorar o tampo da mesa, hoje pertenço
a um anão.
Enquanto as visitas assentavam ideias e descansavam um nadinha, fui à
cozinha. Uma miscelânea convidativa pairava no ar. Estava tudo diferente.
Depois de várias corridas à loja a compôr faltas e acrescentos, de aturarem o
mau humor do merceeiro, mas vocês hoje tiraram a noite para me moer a cabeça? A
loja já fechou. Depois de tudo isso, que foram muitas vezes, os meus irmãos e primos tinham tomado banho e sido postos na
rua sem ordem de entrada. A cozinha estava em polvorosa e a minha tia
era um ser divino que se movia nela como peixe no aquário, absolutamente à
vontade. Acudia a todo o lugar: as quatro bocas do fogão estavam ligadas e de
todos os tachos se escapavam aromas apelativos. De vez em quando, os garotos entreabriam
a porta da cozinha e quatro rostitos alegres e esperançosos assomavam a cheirar o ar de olhos semicerrados e sorriso
desvanecido. Mas logo a minha tia dizia uma graça e fechava a porta com
firmeza. Junto ao fogão, a minha mãe mexia calmamente um tacho de que se desprendia
o odor de açúcar em ponto de caramelo. A minha tia girava entre a mesa e o
fogão com uma segurança assombrosa e garantia-me que estava tudo bem. Ao ver-me
disse, senta lá os franceses que agora é que eles vão ver como se come no
Alentejo. Os de Braga não sabem como é.
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