No
campo, nem tudo é bucólico. E menos no campo português dos anos cinquenta. Ali,
as crianças aprendiam o mundo que julgavam rodeado dos silvados fechados e
raivosos que em sonhos lhes rasgavam a pele. O campo transpirava silvas.
Extremavam propriedades, zonas de ninguém - agora que penso nisso deviam ser de
alguém – repletas de silvas a desmedir, ardilosas beiras de estrada a que os
cantoneiros não davam fim, veredas que se cortavam sobre a sua exuberância e só
atravessadas em companhia. Eram lugares de temor nocturno onde nem os mais
afoitos passavam. O entusiasmo das silvas elevava-se a sepultar nele qualquer
homem e, se alguém fosse apanhado na clareira de um silvado, não havia
escapatória; em veredas que esventrassem silvados, só se fazia caminho de sol;
e, de cada vez que nelas se entrava, tinham que se agarrar as silvas em jeito
de pinça, cuidados de mãos a domá-las, enquanto o resto do corpo tentava a
travessia. Junto à estrada nacional, no fim da descida, havia "na cova dos Silvas", um silvado
célebre e denso, enovelado pela noite, onde a lua nova fazia aparecer
lobisomens hirsutos e só antevistos. E, a coberto do anonimato, também se
roubavam carteiras. Era uma zona dramática, lúgubre. A falta de iluminação
eléctrica e um canavial do outro lado da estrada rematavam a claustrofobia do
lugar e propiciavam maus encontros. Passei ali algumas noites a pedalar
furiosamente na minha bicicleta sem luz, fugindo às multas e aos maus
encontros, sem sequer me assomar à ideia o perigo que representava a
minha circulação invisível.
Nesse
tempo, as crianças brincavam todas juntas, sem a distinção entre brinquedos de
rapaz ou rapariga. Faziam os brinquedos e brincavam. E conversavam. As
brincadeiras propriamente ditas duravam quase sempre pouco tempo porque ele se
consumia na construção do brinquedo, o que já era brincar. Daí que as
conversas encompridassem. E assim se ia aprendendo a espessura do tempo. Porém,
era bom dar existência a alguma coisa: carros que logo deixavam cair as rodas,
assobios que à primeira apitadela se rasgavam, matrafonas de trapo mal cosido que
perdiam um membro no primeiro colo.
Por
vezes, passeavam livres pelo campo, a despropósito. A vê-lo, no vagar de serem
crianças. Mas vê-lo era subir a pinheiros, esperar o comboio junto à via férrea
a que chamavam “a linha”, comer amoras, apanhar flores para enfiar nas linhas
de alinhavar que as avós condescendiam em dar-lhes para fazer colares. E a
noite surpreendia a aflição das mães, candeia na mão ou na beirinha da mesa a
tirar picos de mãos e pés, que as silvas e os cardos não perdoam invasões. A tia
Bernardina, mulher rija e de pouca meiguice, entornava o frasco do álcool puro
sobre os arranhões ensanguentados, indiferente aos agudos da dôr, o que arde é que cura. Apesar dos
ralhetes e dos tabefes, as primeiras amoras, ainda a encarnejar numa acidez de
remédio que não presta, eram deles. E as segundas, a suplicar por entre o aguçado
das silvas, olhos redondos escorrendo azeviche, colhe-me. E depois vinham apressados desarranjos intestinos,
diarreias de, minha senhora ontem não
pude vir à escola, doía-me a barriga. Caganeira não era palavra de se dizer a uma
professora.
Anos
mais tarde, chegou a luz eléctrica. Ou só cresceram. Passavam nas silvas e os
olhos mendigos, cativos das amoras, só
uma. Mas eles crescidos, com pensamento feito, razoáveis, estão sujas de pó, fazem mal. (cont.)
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