(continuação)
Servindo-se
quase sempre das mãos ágeis do ti Lourenço, o tempo e o progresso finaram os mufedos
de silvas. O ti Lourenço reinava no monte do cabeço onde nenhuma mulher ousava,
excepto as nativas. Era pessoa estimada na aldeia por teres e haveres, já
governo dos filhos – cada um herdara foro e casa. Invariável na sua camisa branca sem um vinco, o proprietário das casas do
cabeço era parco em palavras e jamais lhe ouviram um grito. Adriana aprendera a reconhecê-lo por esses sinais
inconfundíveis, o bigode e cabelo brancos a rimarem com a alvura da camisa; o
erecto do corpo que passara os oitenta; a gadanha às costas em pose de rei que
segura o ceptro; a passada larga e certa, segura. Gadanheiro de mão cheia,
conhecia todos os pastos e buracos ou saliências do chão. Era o ancião da
aldeia e recebia dos mais, respeito natural. Vivia segundo as suas próprias
leis, sem as enaltecer ou exibir, mas não renunciando. E fazia orelha mouca à
esporádica insistência de padres e freiras que, desafiando heresias, subiam a
íngreme ladeira para lhe apregoarem as vitualhas da redenção. As respostas que
então lhe ocorriam passavam de boca em boca e geraram a admiração contrita dos
conterrâneos, que intrigavam na evidência do original.
O
Ti Lourenço era o único velho que nunca foi chamado pela idade e também o único
que sabia ler e escrever, a declarar-se, olhos nos olhos com a religião, maçónico
e anticlerical. A estas palavras, as irmãzinhas da caridade que pediam para as
missões, desciam a ladeira a correr como se peste no monte e nem chegavam a saber
dos seus quereres solidários. Cá em baixo, ainda a ofegar, faziam um sinal da
cruz incompleto e declaravam aos passantes que franziam o sobrolho a tais
arrebatamentos em seres de calma e cinzenta natureza, aquela alma está perdida, é preciso rezar por ele, só Deus pode fazer o
milagre. E assim se demitiam de salvar uma ovelha. Toda a aldeia
conhecia as duas palavras mágicas do Ti Lourenço e, apesar da ignorância significante,
os aldeões eram unânimes a admitir que o velho tratava a vida por tu. Sabia
muito, diziam.
Adriana memorizara-lhe os hábitos. Vestia
sempre as mesmas cores, não se apresentava com a barba por fazer, pouco
frequentava a taberna e nunca ali se embebedou. Manhã cedo, a mesma hora o
encontrava já na Nacional, gadanha ao ombro, a ir pela taberna para um cálice
de aguardente. Adriana sabia que ele entrava e, olha a minha vizinha! Vá, dá cá o mata-bicho ao vizinho. Bebia de
um gole, deixava o dinheiro à conta sobre o balcão e seguia caminho, a parecer um
cowboy sem pistola ou cavalo. Ia para a batalha com as silvas, atravessava o
seu deserto e os desfiladeiros vegetais onde não se podia cair ou sequer
desfalecer. Que não incluíam índios. Era só ele e a sua camisa incólume no meio
dos silvados, a gadanha a um lado e a outro a abrir clareiras, a terra enrubescida, nua, em pelo, rasa do fato verde, num queixume miúdo, “tenho frio”.
E os lagartos e cobras antes ocultos, obrigados a rastejar
sobras de hibernação desconsolada, nasci
neste lugar, tenho aqui a minha casa, onde é que vou agora. E a gadanha do
Ti Lourenço suspensa, desço ou não? E,
se a cobra das grandes, o velho partia-a em duas, não sofreu nada, foi de repente. E punha-a à beira de um caminho de
sol, já não faz mal a ninguém, mas as
cobras gostam de um solinho. A mesma sorte não tinham os lagartos, animais
destituídos de arte, na bitola estética do Ti Lourenço. Aos lagartos o velho
dava caça desabrida e remoçava em fúrias espadanadas da gadanha, se empreendiam de fugir para as partes intocadas do silvado. Morto o bicho,
enterrava-o a constatar pesaroso e crítico, tão feio, bicho tão feio. E tudo isto Adriana acompanhou em algumas
expedições pelas extremas das quintas. A mãe, não vás para longe, fica perto do Ti Lourenço. Sentava-se quieta
num muro, a meia distância do silvado e com os pés levantados do chão, medrosa
da floresta de animais que supunha debaixo das silvas. E só a voz lhe passeava
as perguntas para cá e para lá. Maravilhava na elegância dos gestos de trabalho
do Ti Lourenço, o redondo dos olhos a passear-lhe na harmonia da figura. Tantos
bailarinos depois e nenhum aquele desempenado seco de tronco, nenhum no meio
das silvas e dos agudos dos espinhos, em luta contra a loucura persistente e
invasora da amoreira silvestre. O ti Lourenço era um herói. Que lhe dava mãos
cheias de amoras, estas estão
madurinhas, minha vizinha; vou deixar umas para a neta. E ela hipnotizada pela doçura negra a rebrilhar que escorria da mão do velho para as
suas, abertas em concha. A água crescia-lhe na boca a antecipar o momento de
sentir a textura de pele fina que arredondava cetins em cada conjunto de frutos,
quando ainda todo o sabor é futuro. Em seguida, a uma pressão ligeira da língua,
o gosto doce e escuro da amora derramava-se, escorria sem intensidades particulares,
talvez até um pouco insípido; apenas doce. Enquanto engolia o sumo, pensava, “como
podem as silvas tão feias e espinhudas, tão de afastar gente e morder todos que
se aproximem, alcançar tanto açúcar? Onde é que elas o encontram?” E perguntava.
Mas o Ti Lourenço não respondia. Olhava-a e, és mais esperta que a minha neta, isso és. No fim do sumo havia pedacinhos, talvez grainhas de
amora, que disfarçava na boca e cuspia mal o velho virava costas; não queria
ofender-lhe a boa vontade. E concluía para si, “não gosto nada dos ossos das amoras”.
E
um dia o ti Lourenço, entre uma gadanhada e outra, lançou a novidade, há amoras que nascem nas árvores. Há árvores
chamadas amoreiras que dão amoras muito melhores que estas. E ela pasmou
com a natureza das coisas. (cont.)
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