segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dentro de Ti Ver o Mar

              Ainda há pessoas que não lêem?
            Em Portugal haverá poucas. A leitura deveio, em grande parte, digital. Não restrita a livros. Nem sobretudo. Mesmo a cusquice da net é escrita ou tem algumas palavras. E não é crível que, apesar da crise, haja assim tantos lares sem acesso à internet. Ou pelo menos sem um Pc. Não me querendo tomar como medida do universo, a minha opinião vale o que vale, não conheço nenhum jovem sem computador. E conheço bastantes. Poderá ter sido da campanha do e.escola ou de um movimento natural da sociedade, mas a cultura tornou-se, em grande parte, digital. A maioria dos nossos jovens usa o computador e gasta nele muito do seu tempo livre. E também os menos jovens, os maduros, os velhos, os assim-assim. E, ainda que em menor quantidade, também se escreve. Postar, comentar, deixar bocas venenosas, jocosas ou estereotipadas, sem pensar muito nem gastar o  tempo julgado urgente para buscar a novidade e a notícia. Contudo, penso que cultivamos a não notícia. Não me cabe meditar aqui sobre o possível português-achinesado das conversas, as faltas de concordância e etc. Mas, e apesar das múltiplas funções do Pc, a verdade é que ele tem um teclado a permitir-nos a comunicação escrita e o contacto com os outros. E que podemos utilizar tripla linguagem, audiovisual e a simbologia dos caracteres escritos.
            Portanto, parece-me natural que estes dados integrem o quotidiano dos romances que decorrem no século XXI. Apesar da força imagética, todos têm de se ancorar na realidade. Já quase não existem cartas, existem mails. E vem esta arenga toda a propósito do último romance de Inês Pedrosa, escritora que aprecio e incluiu o correio digital no último romance. E alguém me fez o favor de uma prenda. Da Inês espero coisas depuradas, palavras luminosas, como um dia tive a oportunidade de lhe dizer. Li "Dentro de Ti Ver o Mar" em dois dias, velocidade muito invulgar no eu que é mim. E, só por isso, a minha vénia à autora.
Agora que terminei, estou meia penumbrosa, ainda fora de um claro sentir. Argumentam, ah, e então a racionalidade, o pensamento? Sorry, as minhas raízes de pastorícia caeiriana empurram-me para as impressões e é sobre elas que o pensamento se constrói;  talvez eu sofra de impressionismo mental, que é como quem diz, empirismo em banda larga.  Posto isto, verifiquei que Inês Pedrosa mantém o teor de escrita. Depurada. Luminosa. Mas não é a mesma. Mudou. Podem dizer, cresceu; amadureceu; aborda questões reais e de premência maior; deixou de ser lírica. E talvez seja isso. Também. Deixou de ser lírica. Mas não apenas. Há uma carga excessiva no livro. Uma carga de gente demasiado utópica a viver problemas quotidianos. Um desentendimento relacional tão profundo entre vários intervenientes que chega a não jogar com as atitudes. Ali se faz um retrato de época. Foi escrito em 2012 e situa-se entre 2003-2004. E o facto é que me põe em causa.
É descrita uma realidade citadina centrada na eterna questão amor-sexo e percorre a pé coxinho - não por ser coxa a prosa, mas porque percorre devagar a relação, a demorar-se no passo-a-passo -  a relação entre um homem casado e uma fadista com origens insólitas e a que só o livro dá resposta (pretensamente, um dos motores da obra é a busca de identidade da cantora, a sua necessidade de se demarcar como um eu absoluto no seu ser único e individual). Aflora de forma secundária o problema da violência psicológica sobre as mulheres, das mulheres em regime prisional, dos conflitos gerados em colégio interno, do complexo gata-borralheira, dos cleptomaníacos e outros sobre os quais a autora discorre em brevidade. É também um livro sobre mulheres e o poder da amizade feminina. Mas não se enternece. Como se a Inês tivesse querido escrevê-lo de pé, a olhar em frente. E eu gosto da Inês ajoelhada, rendida, os olhos a descerem até ao nível de quem está e não aguenta o erecto; foi essa que conheci em “Fazes-me falta” ou mesmo em, “Fica comigo esta noite”. Dentro de Ti  Ver o Mar é um romance onde, no amor, o aguilhão do corpo toma conta de tudo, as frases ternas masculinas são eternas capas de disfarce e o desejo físico assume no feminino profundidades ruinosas. Destrutivas, sem nada ruir. O homem que nos surge como engatatão e bom pai de família é afinal um pilha galinhas que,  insípido, morre de ataque cardíaco. A mulher, essa, é o ser que, escorado na amizade feminina, tem mil vidas. Morre tarde, tem vários homens, filhos… E não cabem remorsos por se dar um filho a criar, não há decisões difíceis nem problemas de consciência, é tudo rápido e efémero. Sem traumas.

Mas, quem sabe, o livro esteja certo com o tempo e seja eu quem está fora dele. Que todos somos efémeros, mas existe em cada decisão humana uma inteira eternidade. E isso não encontrei, Inês. Faltou-me. Mas pode que só a mim.

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