Ainda
há pessoas que não lêem?
Em Portugal haverá poucas. A leitura
deveio, em grande parte, digital. Não restrita a livros. Nem sobretudo. Mesmo a
cusquice da net é escrita ou tem algumas palavras. E não é crível que, apesar
da crise, haja assim tantos lares sem acesso à internet. Ou pelo menos sem um
Pc. Não me querendo tomar como medida do universo, a minha opinião vale o que
vale, não conheço nenhum jovem sem computador. E conheço bastantes. Poderá ter
sido da campanha do e.escola ou de um movimento natural da sociedade, mas a
cultura tornou-se, em grande parte, digital. A maioria dos nossos jovens usa o
computador e gasta nele muito do seu tempo livre. E também os menos
jovens, os maduros, os velhos, os assim-assim. E, ainda que em menor
quantidade, também se escreve. Postar, comentar, deixar bocas venenosas,
jocosas ou estereotipadas, sem pensar muito nem gastar o tempo julgado urgente para buscar a novidade e
a notícia. Contudo, penso que cultivamos a não notícia. Não me cabe meditar
aqui sobre o possível português-achinesado das conversas, as faltas de
concordância e etc. Mas, e apesar das múltiplas funções do Pc, a verdade é que
ele tem um teclado a permitir-nos a comunicação escrita e o contacto com os outros. E que podemos utilizar tripla linguagem, audiovisual e a simbologia dos caracteres escritos.
Portanto, parece-me natural que estes dados
integrem o quotidiano dos romances que decorrem no século XXI. Apesar da força
imagética, todos têm de se ancorar na realidade. Já quase não existem cartas,
existem mails. E vem esta arenga toda a propósito do último romance de Inês
Pedrosa, escritora que aprecio e incluiu o correio digital no último romance. E alguém me fez o favor de uma prenda. Da Inês espero
coisas depuradas, palavras luminosas, como um dia tive a oportunidade de lhe
dizer. Li "Dentro de Ti Ver o Mar" em dois dias, velocidade muito invulgar no eu que é mim. E, só por isso, a minha vénia à autora.
Agora que terminei, estou meia penumbrosa, ainda fora de um claro sentir. Argumentam, ah, e então a racionalidade, o pensamento? Sorry, as minhas raízes de pastorícia caeiriana empurram-me para as impressões e é sobre elas que o pensamento se constrói; talvez eu sofra de impressionismo mental, que é como quem diz, empirismo em banda larga. Posto isto, verifiquei que Inês Pedrosa mantém o teor de escrita. Depurada. Luminosa. Mas não é a mesma. Mudou. Podem dizer, cresceu; amadureceu; aborda
questões reais e de premência maior; deixou de ser lírica. E talvez seja isso. Também. Deixou de ser lírica. Mas não apenas. Há uma carga excessiva no
livro. Uma carga de gente demasiado utópica a viver problemas quotidianos. Um
desentendimento relacional tão profundo entre vários intervenientes que chega
a não jogar com as atitudes. Ali se faz um retrato de época. Foi escrito em
2012 e situa-se entre 2003-2004. E o facto é que me põe em causa.
É descrita uma realidade citadina centrada na eterna questão amor-sexo e percorre a pé coxinho - não por ser coxa a prosa, mas porque percorre devagar a relação, a demorar-se no passo-a-passo - a relação entre um homem casado e uma fadista com origens insólitas e a que só
o livro dá resposta (pretensamente, um dos motores da obra é a busca de identidade da cantora, a sua necessidade de se demarcar como um eu absoluto no seu ser único e individual). Aflora de forma secundária o problema da violência
psicológica sobre as mulheres, das mulheres em regime prisional, dos conflitos
gerados em colégio interno, do complexo gata-borralheira, dos cleptomaníacos e outros sobre os
quais a autora discorre em brevidade. É também um livro sobre mulheres e o poder da amizade
feminina. Mas não se enternece. Como se a Inês tivesse querido escrevê-lo de
pé, a olhar em frente. E eu gosto da Inês ajoelhada, rendida, os olhos a descerem até ao nível de quem está e não aguenta o erecto; foi essa que conheci em “Fazes-me falta” ou mesmo
em, “Fica comigo esta noite”. Dentro
de Ti Ver o Mar é um romance onde, no amor, o aguilhão do corpo toma conta de tudo, as frases ternas
masculinas são eternas capas de disfarce e o desejo físico assume no feminino profundidades ruinosas. Destrutivas, sem nada ruir. O homem que nos surge como engatatão e bom
pai de família é afinal um pilha galinhas que, insípido, morre de ataque cardíaco. A mulher,
essa, é o ser que, escorado na amizade feminina, tem mil vidas. Morre tarde,
tem vários homens, filhos… E não cabem remorsos por se dar um filho a criar,
não há decisões difíceis nem problemas de consciência, é tudo rápido e efémero. Sem traumas.
Mas,
quem sabe, o livro esteja certo com o tempo e seja eu quem está fora dele. Que
todos somos efémeros, mas existe em cada decisão humana uma inteira eternidade. E
isso não encontrei, Inês. Faltou-me. Mas pode que só a mim.
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