Pouco
sabemos das pessoas que amamos. O saber é frio, lúcido, razoável, descritivo. E
gostamos sem lucidez, a abarrotar de preferências, as descrições armadas em
folhas de outono, caídas em desinteresse. Cada objecto do nosso amor é único. Por
exemplo, nunca vi a minha madrinha como ela é. Mas posso dizê-la como a sinto
desde sempre: madrinha e minha. O que é uma sorte.
Tenho
memórias antigas de uma rapariga de avental e touca branca, calada e, para mim,
muito alta. Trabalhava no fim de uma escadaria difícil e que pouco a pouco me deveio
impossível de vencer, as pernas de pedra, não somos capazes. Atormentava-me o
lanço único de escada que se escancarava pavoroso, logo após o toque da
campainha. Sobranceiro, erguia-se a pique e reinava sobre o espaço num volume
de degraus a meus olhos impressionante. Então, lá em cima, onde me parecia que
não seria capaz de chegar, surgia a criada de fora que ao ver-nos rasgava um sorriso
e, destemida, corria degraus abaixo, olha quem nos veio ver, a Beatriz. Chegava-se
a nós, pegava-me ao colo e salvava-me dos degraus que galgava em facilidades
incompreensíveis. Se a porta da rua entreaberta, o panorama mudava, a mão da
minha mãe a puxar-me escada acima, içada a cada degrau. E ela, por que é que tu
não mexes as pernas? Respondia-lhe, não andam; e a minha mãe incrédula, sua
preguiçosa, vinhas na rua a correr. E por mais que eu, mas a rua não tem
escadas, ela não entendia e chegava ao cimo cansada de puxar por mim. Claro
que, quando experimentou largar-me a meio, fiquei desamparada; olhei para baixo e para cima e aterrorizei. Desatei num berreiro. E se ela não
me deitasse a mão, cairia escada abaixo tanto as pernas me tremiam, o pérfido degrau onde
me encontrava, a encolher na largura.
Lá
em cima, depois de um corredor comprido e escuro em que me recuperava, os
braços da minha madrinha levantavam-me, parece uma pena, tão levezinha.
Tirava a touca e espalhava um basto cabelo às ondas que eu acompanhava com as
mãos, a fazer-lhe uma festa. E era daquele altar de conforto que olhava a casa;
íamos cumprimentar a senhora e os meninos no salão, a minha madrinha uma nota
de satisfação, é a minha afilhada. A menina era da minha idade mas nem parecia.
Era a menina Maria Rita a quem a família, não as criadas, chamava Mani. A
menina Maria Rita era linda e tinha brinquedos e jogos nunca vistos. A senhora
incentivava-nos a brincar juntas e mandava a minha madrinha para a cozinha. E a
menina, com um jeitinho bonito e importante, ficava a mostrar-me as coisas que
tinha e o que faziam, ou nós podíamos fazer com elas. Nunca nos juntámos numa
brincadeira.
A
minha madrinha trazia-me prendas: peúgas com folhos a que eu me apegava
ferozmente e que só me descalçavam adormecida; um extraordinário ferro que saiu
na farinha amparo e a menina MariaRita desprezou e veio a morrer disforme e fedorento
quando uma garota endiabrada mo roubou de dentro da caixa de sapatos das minhas
riquezas, e feita mázona o atirou no
lume da vizinha; um boneco de casquinha
que mexia cabeça, pernas e braços e parecia saído da mocidade portuguesa, risca
ao lado, penteadinho e de calções e camisa de virados. Que viajou até mim numa
caixa, mumificado em papel de seda, a esticar-me o suspense. A alegria de ganhar
o garoto de casquinha só foi ultrapassada pela minha bicicleta e, mais tarde, pela Maxi Push. Teve um reinado longo o meu boneco.
A
minha madrinha namorou e fui carraça no colo do meu padrinho – assim nomeado desde
o primeiro dia de namoro – e julgo que não os terei deixado namorar
convenientemente. Íamos esperá-lo de mão dada até à curva, depois a figura dele
surgia difusa e a minha madrinha, já lá vem. Eu distinguia uma mancha e ela,
traz o casaco azul-escuro que lhe fica tão bem e vem a pedalar com força. Eu
olhava na mesma direcção e continuava tudo indistinto. Provavelmente, o que então
julguei força amorosa da minha madrinha era a sua visão normal face à encoberta
miopia da afilhada. Mas só agora penso nisso.
O
seu casamento foi a minha estreia em cerimónias. Teria uns cinco
anos. Amei vê-la de véu e com um ramo de flores na mão; o ramo estava arranjado
em bouquet, espargos entremeados com flores e um papel rendado a
suportá-lo. Bem lho pedi, mas, ao contrário do que sempre fazia, ela não quis
dar-mo, teimou em carregá-lo o tempo todo na igreja o que muito me surpreendeu
e encheu de perguntas. Eu e a Mani estamos nas fotos com os noivos e os
padrinhos que, no caso da minha madrinha, eram os patrões. A Mani brilhava no seu extraordinário; pela primeira vez vi um chapelinho – era de veludo vermelho
escuro debruado a branco e rimava com os laços e passe fita do vestido, inchado de saiotes engomados, que me
encantou; parecia mesmo de fada. Vaidosa do meu vestidinho branco, só tinha
pena que não fosse igual ao da minha madrinha, todo às rosinhas, mas a minha
mãe respondeu-me que o vestido das noivas não podia ser igual ao de ninguém.
Tive sérios problemas com o véuzito que estreei, não me parava na cabeça,
descaía; por fim, a minha mãe atou-mo ao pescoço mas, pelas fotos, não resultou
grandemente. Na foto que tenho, a minha madrinha está séria, parece triste.
Quando lho notei, explicou-me que estava a concentrar os olhos para não parecer
estrábica. Na verdade eu preferia uma noiva-madrinha risonha e estrábica, mas
ela pareceu-me contente do esforço e calei a ideia. Eu e a Mani estamos
sorridentes, ela divertida e eu de cabeça meio torta, sorriso envergonhado, muito
atrapalhada - era a primeira vez que me fotografavam e a minha mãe encontrava-se a dois longos metros -, com uma mão a torcer e levantar a saia, os olhos a seguir as
ordens dela, sentada no banco da frente da igreja, levanta a cabeça e ri-te. Lembro-me da constância em desviar a cabeça por causa do ramo; um espargo ficava-me na
direcção dos olhos. E sei que há uma foto onde estou com um olho fechado em fuga ao invasor.
Em
casa da noiva havia uma sala sem porta, com uma cortina apanhada dos lados. Achei
um supremo bom gosto e quis logo importar a moda para minha casa, mas a minha
mãe não deu resposta às milhentas vezes que perguntei e pedi. Portanto,
abandonei o assunto. Para ajudar em casa enquanto os filhos cresciam, a minha
madrinha lavou, durante anos, roupa para fora. Passava horas ao tanque. E
convidava-me em todos os aniversários. Sempre encontrei a mesa posta na
salinha das cortinas e um senhor velhote, muito passadinho a ferro e bem posto,
que se alambazava de tudo a sussurrar, a menina Zefa é que era, tem uma mão para a
cozinha que só visto, chegue-me mais uma talhadinha de bolo, se faz favor. E
nós só comíamos depois de ele ir embora. Cheio de salamaleques e de bolos. Nunca
gostei da maneira como a minha madrinha o servia. É que não partia bolos, pão,
não punha sequer o açúcar na chávena, o parvalhão. E depois, a minha madrinha
ficava a dizer muito baixinho, não convidei o senhor Gonzaga, mas ele apareceu,
sabe os anos de todos, até dos filhos, e nunca traz uma prenda. O senhor
Gonzaga era o pai da mãe da Mani. Dizia ele que gostava muito da minha
madrinha. Mas eu não gostava dele, a fazer-se dono de tudo, até dela; e a comer
antes de nós, a encetar todos os bolos, mesmo o dos anos, antes de cantarmos
os parabéns. O meu padrinho também não gostava dele e resmungava, já não és
criada; lavas a roupa suja dele e chega. Se eu não precisasse…
(continua)
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