Por
dificuldade em andar no escuro, no cinema cumpro o horário. Se entro tarde,
insiste-me fulgurante a ideia de quão bom seria que alguém me levasse, pela mão,
ao lugar. Como nenhuma mão se me apresta, levanto muito as pernas e os pés, a
imaginar degraus em todo o lado e a desconfiar das fiadas de lâmpadas no solo; olho-as com cuidado para as não pisar, no receio de vidro fino a partir e descargas de impiedosos filamentos que me abocanhem os pés. Depois, a ideia de incomodar pessoas já sentadas, é-me funesta. Ora, naquele
lusco-fusco, as letras que assinalam as filas e os números dos lugares emigram
ou tornam-se indistinguíveis. Tudo razões mais que suficientes para entrar
com luz. Ou seja, com aquela média luz que não chega a ser. Não basta o ar de
catacumbas de que ora sofrem os cinemas, nem quando o filme intervala, começa
ou acaba, a luminosidade é decente. Quase parece que, em vez de ir assistir a um
filme, estamos prestes a envolver-nos numa actividade subversiva. E depois
querem clientela! Tanto ouvi falar de se namorar na última fila… e agora é um
deserto. E sobre este despovoamento se poderiam escrever livros compridos. Mas
não tive a felicidade de frequentar a última fila, portanto…
Entrámos
um quarto de hora mais cedo para ver “12 anos escravo”. Por saturação de saldos
e cansaço de corpo e mente. Tínhamos tempo e escolhemos o lugar com requinte:
mais atrás do que à frente e mais ou menos a meio da sala. Mal nos sentámos, os
nossos pés em coro, muito obrigado. E
bem ouvi o meu esqueleto a aliviar num suspiro, ufa!
Entretanto, desceu-nos uma paz feita de penumbra e cheiro a mofo acompanhada de música ambiente. Procurei os óculos e lancei-os ao lugar a fim de evitar mais episódios - umas vezes não os levo e não consigo ler as legendas; outras, engano-me e tenho de ver o filme de óculos de sol; algumas, não utilizo os óculos 3D; e uma vez soltou-se uma haste – culpa do parafuso que se desenfiou - e levei o tempo a levar a mão à haste que não havia e apanhar os óculos do chão.
Entretanto, desceu-nos uma paz feita de penumbra e cheiro a mofo acompanhada de música ambiente. Procurei os óculos e lancei-os ao lugar a fim de evitar mais episódios - umas vezes não os levo e não consigo ler as legendas; outras, engano-me e tenho de ver o filme de óculos de sol; algumas, não utilizo os óculos 3D; e uma vez soltou-se uma haste – culpa do parafuso que se desenfiou - e levei o tempo a levar a mão à haste que não havia e apanhar os óculos do chão.
Ambas
tínhamos visto a apresentação do filme na TV e, ainda a fita dava os primeiros
passos, avisámo-nos mutuamente de que algumas cenas eram fortes. Logo de seguida, deixei de ter amiga e fiquei sozinha num frente a frente com o filme (suponho que à minha amiga tenha
sucedido o mesmo). Pela minha parte, desatei a sofrer desalmadamente que é a
única forma que sei de reagir – reagir, pois, é puramente animal – ao
sofrimento injusto. Um negro que é livre e ainda assim o raptam e fazem
escravo. À mercê de todos e de qualquer um. Quanto vale a vida humana sendo
escrava? Nada. Quanto vale a força e o poder branco sobre um homem justo mas
negro? Tudo. No entanto, ia preparada para essa relação desigual senhor-escravo,
para o preconceito que se baseia na diferença de cor. Mas a vida não me
apetrechou para as brechas que o filme abre, as secções que cria, as grades da
alma humana que mostra. Fugi a escrevê-lo porque me ficou em amálgama e
me obriga a voltar e isolar do meio da trama esses sinais de naufrágio. Mas
tenho de o fazer: pôr etiquetas, catalogar. Que, mais além, não consigo.
Curiosamente, as personagens que me retalharam foram desempenhadas por Lupita Nyong’o e
Michael Fassbender. Ou, a escrava negra por quem Fassebender – um dono de
plantação prepotente e esclavagista - nutre estranha e alucinada paixão. E o que é para
muitos a história de um negro livre raptado e feito escravo durante 12 anos,
foi para mim a história das mulheres do mesmo tempo e de outros, num mundo de poder. Masculino. Onde não contam. Ou onde, por
inadvertidamente contarem demais, descontam. É o que acontece à personagem de
Lupita. A jovem escrava nasce para nós dentro da plantação. Adolescente
ímpar. A melhor apanhadora de algodão, a superar os homens. Sofre os efeitos da
paixão desenfreada do patrão, casado com uma menina branca. Paixão
patética, absurda, contra ele mesmo e a sua moral racista. E por isso gostei de
Michael Fassebender. Porque soube imprimir ao seu master não só a selvajaria
sem escrúpulos da época como a raiva contra si mesmo, o ardor viral de uma paixão apodrecida de desejos de presença e domínio, que não suporta as breves
ausências da escrava, que exige vê-la sempre, escravizado ele pela posse de um "objecto" que em tudo(?) lhe pertence e não consegue capturar. Simultaneamente, sentimos
no fazendeiro uma espécie de asco de si mesmo que se descontrola na presença da
garota e como que se vinga nela de si; que bebe à exaustão porque o álcool tem
seus poderes sobre a memória e ajuda a embrutecer.
Desacredito que volte a este filme. Vai arder-me até que o tempo, que tudo apaga, me consuma. É verdade, o poder baseado na força e na instituição do preconceito faz-se desmesura e catástrofe. E a escrava era uma semi criança a desmaiar no sexo furioso que a violava, que era chicoteada sem dó pelo fazendeiro enfeitiçado (com uma predilecção-tara por meninas púberes), que sofria dele o que a ele pertencia e também o que era nele o ciúme da patroa. E queria morrer. Assim, natural como a sede ou a fome. A morte também é libertação.
Quase no final do filme, quando, enfim, o amigo é reconhecido como homem livre, é a imagem dela a correr atrás da carroça que nos atinge. A imagem desesperada de quem perde para nunca o seu esteio. E a mim me pareceu que ali estavam, rojadas e impotentes, todas as mulheres.
Desacredito que volte a este filme. Vai arder-me até que o tempo, que tudo apaga, me consuma. É verdade, o poder baseado na força e na instituição do preconceito faz-se desmesura e catástrofe. E a escrava era uma semi criança a desmaiar no sexo furioso que a violava, que era chicoteada sem dó pelo fazendeiro enfeitiçado (com uma predilecção-tara por meninas púberes), que sofria dele o que a ele pertencia e também o que era nele o ciúme da patroa. E queria morrer. Assim, natural como a sede ou a fome. A morte também é libertação.
Quase no final do filme, quando, enfim, o amigo é reconhecido como homem livre, é a imagem dela a correr atrás da carroça que nos atinge. A imagem desesperada de quem perde para nunca o seu esteio. E a mim me pareceu que ali estavam, rojadas e impotentes, todas as mulheres.
O
filme termina com um regresso do ex escravo à família de origem, uma recepção calorosa;
antevemos mesmo o futuro de luta daquele resistente a quem só a morte há-de imobilizar.
Mas o que nos enche a alma é a lancinante perda, gritada, rouca, atrás
do rodado do carro. E o
vazio apossa-se da paisagem e toma-nos por inteiro.
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