O
dia está doente, pensou, rente ao parapeito. E logo a mão parou ante a cortina,
a recear comprometer-lhe a leveza; quem sabe se, disposta a carregar as maleitas
do dia, ela engasgava a oscilação sob os dedos. Lá fora, a chuva era muda e caía
em mansidão, gotinhas de borrifador desmanchavam-se no vidro a alargar até
escorrerem em regos pequenos. Através da trama aberta do tecido, observou, como de dentro de uma nuvem, o quadrado húmido da praça a escurecer, as árvores semidespidas,
quietas, a fingir-se de mortas para aguentar o inverno. Teve vontade de as
chamar, psst, tu, sim, tu mesma, junto ao banco de pedra. Contudo, desistiu. Elas
ensimesmavam por inteiro na semimorte, a reunir forças para a rebentação da
primavera e a beber por antecipação toda a água que o Verão lhes havia de
negar. O brilho metálico dos automóveis estacionados em volta do jardim refulgia
acetinados aquosos, aqui e ali partidos pelos troncos, caixinhas pequenas e
sombrias à chuva, a perderem contornos no avanço dos minutos. É só impressão de crepúsculo, não deformam
nem desmancham, amanhã estão ali todos tal qual, disse para si. E anteviu em nitidez a segunda feira de portas a bater, cães a ganir, crianças puxadas para dentro dos
automóveis, um ou outro impropério que saltou e não coube no carro que arrancou
num repente. E ele que cortara o ar de jacto, incógnito da sua brevidade e sem tempo de ver por onde
andava, antes de se sumir no sulco entre as pedras da calçada , agora deixam-me aqui sozinho e vou para onde? Noutra esfera, os senhores de
passear o cão, agastados, despacha-te que este frio me gela os ossos. E apertam
a gabardine com o pijama a espreitar, uma ponta de calça esmorecida sobre o chinelo, cabelos ensonados e sem ânimo, para que
lado caímos, não temos forças, um bocado da gola virado para dentro, aqui é
mais quente, deixem-me estar, por favor. E os cães em euforias de cauda, imunes ao sono e ao frio, a gozar a liberdade de se aliviarem, patas em alegria do chão que pisam, o regalo de adivinhar cheiros na ponta do focinho. A zanga amuada dos autocarros na rua a tomar balanço,
embraiados em mudanças de hora de ponta, e uma ou outra persiana subida aos
arranques custosos, numa constância de vai à frente e vai atrás, que o tremedor
esforçado da mão leva até meia janela. E lá atrás, um rosto átono a voltar-se e esvair em passos de vagar meticuloso.
De repente, no quase noite, uma
garotinha de galochas e guarda-chuva grande demais plantou-se no rectângulo do
jardim aos pulos e, com vozita saltitante, apagou a manhã de segunda feira,
anda, vê-me. Olha! Já sou gande. Olh’ó guada chuva, mãe, olha, olha. E a ela
pareceu-lhe que a chuva se divertia com a garota, mãozinhas juntas em esforço, no balancé do objecto. E a chuva a rir, agora molho, agora não, agora sim, agora não.
E
talvez tenha sido a força desvanecida do sorriso da mãe. Ou o seu desprezo pela
chuva a engrossar, não o deixes cair que te molhas. Ou apenas a luz de diferença no olhar. O certo é
que afastou a cortina e atardou-se a observá-las. Tão bonitas as duas, pensou. Tão
verdadeiras como o quadro de Miguel Torga, “Embevecida a mãe ovelha para
de remoer e a vida para também a ver”.
De onde
vêm às mães os olhos com que olham e que são outros dos olhos diários, feitos
para ver, ler e outras funções. De que fundura de poço tiram, a
braços, essa doçura derramada sobre os filhos e o que lhes pertence. Em que
lume brando cozinham as ternuras de que os vestem, os cuidados com que os
rodeiam, o pavor de que o mal os assombre pelas esquinas.
Contudo,
todas as mães nascem meninas. Crianças. Não pensam em filhos, em casamento, o
sexo não lhes existe em acto. Brincam. Vivem sem futuro maior do que o amanhã,
as datas dos adultos a surgir-lhes sem nexo, incapazes de convertê-las em tempo.
Negar-lhes um desejo é negar o presente, exibir-lhes a impossibilidade. E as
birras que fazem reflectem o apego ao momento. Que urge. Se o adulto
protela uma coisa de que gostam, prostram em desgosto verdadeiro, lágrimas em corda.
O que não pode ser agora, ou mesmo amanhã, equivale-lhes a um não ser absoluto
trazido por mão espúria.
E que as mães de olhos de lago tenham sido estas crianças é, no mínimo, excelso.
E que as mães de olhos de lago tenham sido estas crianças é, no mínimo, excelso.
Perscrutou
o exterior. A noite infiltrara-se a arredondar ângulos, a embrulhá-los.
A garota e a mãe tinham debandado e o escuro engolira os prédios da frente onde
agora brilhava sozinha uma porta de entrada, exibindo a desolação de não ser
ainda casa, de ninguém a passear-lhe os olhos com interesse, ninguém a
interessar-se por estar nela com alma de, enfim! Na praça, sombrios e erectos gigantes rodeavam-se de vultos menores a amontoar, parte de um mundo oculto só imaginado que brota
sombrio do âmago da noite, repleto de mãos e dedos misteriosos e terríficos que
aliciam o tacto, nos tocam os braços e tolhem as pernas e que, se nos prendem
pela cintura, nos deixam cativos até ser manhã. Ao lado, uma ou outra janela
existia e desistia, à mercê de um interruptor, talvez accionado por um
esquecimento qualquer. Uma porta bateu lá ao fundo onde a escuridão se apertava
de encontro aos carros e a noite, num frémito, recuou um nadinha, temerosa.
Então, pousou de leve a cortina, acertou-lhe o franzido e correu a persiana. Maquinal, conferiu-lhe o paralelo das lâminas postas em sossego. E sobreveio-lhe um acervo de dúvidas, Qual será a minha cara de olhar a rua? Que som tem a minha persiana quando fecha e levanta e quem a ouvirá? Como será que eu existo para os outros? E de súbito, a dar-se conta do seu sem ruído na vida,
Então, pousou de leve a cortina, acertou-lhe o franzido e correu a persiana. Maquinal, conferiu-lhe o paralelo das lâminas postas em sossego. E sobreveio-lhe um acervo de dúvidas, Qual será a minha cara de olhar a rua? Que som tem a minha persiana quando fecha e levanta e quem a ouvirá? Como será que eu existo para os outros? E de súbito, a dar-se conta do seu sem ruído na vida,
se
eu existir...
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