A
atribuição dos óscares levou-me a “Dallas Buyers Club” (2013), filme em stoque
que aguardava um apetite que eu sabia não ia chegar. Mas os dois actores
ganharam respectivamente o prémio de melhor actor principal e melhor actor
secundário. E a memória que não nos larga, a chagar-me o juízo, as palavras de
alguém que me quer bem e a quem tanto quero, tu perdes muitos filmes bons por
causa dessa atitude; - a continuar, engatilhada em reprovação de ternura – há
histórias boas, mas se começam violentamente, tu desistes. E perdes muito.
Perdes sempre alguma coisa.
Mas
neste filme eu sabia que não era a violência. Dallas Buyer Club é mais. Nele
existe o lado da vida que me faz estremecer involuntária, me turva a vista de
repugnância e torce o estômago até à agonia do vómito. Quando terminou, dei por
mim na casa de banho, as mãos na bancada, uma mulher de meia-idade a
observar-me do espelho, agoniada a mais não poder, terrosa de pele, o olhar num
desconcerto alucinado. Olhei-a na pergunta muda, “para além da insónia no cesto
de aquisições nocturnas, de que valeu vê-lo? De que me valeu assistir o que
já sabia acerca da indústria farmacêutica e do HIV?" É certo, surgiram-me uns
quantos nomes novos e científicos, mas duraram uma estrela cadente.
O
único a merecer-me reparo foi o desempenho dos dois actores. Ainda que a
história tenha um lado atractivo de verosimilhança com a realidade que em mim dá
a volta, azeda e se torna repelente. Não é delicodoce senão em breves momentos –
bani-los teria sido uma ideia - e traça um percurso de fim de linha sem os
adereços da peninha fácil, da componente religiosa, da assumpção de uma
transcendência capaz de mitigar ou iludir o cáustico do caminho. Não há bermas
verdejantes nem fontes de água pura. Na verdade, não há bermas. Ali, nunca é Primavera,
vive-se na dureza do asfalto.
Porém,
os dois premiados. Um mais um. Já conhecia o actor principal, Matthew McConaughey um galã de
perfil muito razoável em filmes só digeríveis sexta à noite, quando nós cansadíssimos,
estatelados frente à TV, não muito à frente de qualquer animal doméstico; perdido
um bocado da fita, nada perdemos. Comédias supostamente românticas - já ninguém
sabe o que é romantismo -, lamechices desenxabidas ao lado de actrizes que
nunca serão formidáveis apesar da beleza inegável. Francamente, não esperava
mais dele. Mas Ron Woodroof mudou-lhe
– em mim, já me disseram que existe uma série onde a sua qualidade desabrocha -
a imagem. Note-se, não foi um acrescento. Foi antes um “A Star is born”.
Certamente o realizador, Jean-Marc Vallée, viu-o muito mais e melhor que
eu. Ainda bem. Na fita, McConaughey é
um doente de HIV que, como tantos outros à época – e quem sabe ainda hoje -,
não fazia ideia de que fosse transmissível por relações sexuais desprotegidas.
Que, depois de lhe vaticinarem a duração – 30 dias – resolve tomar a doença a
seu cargo, abandona o hospital e as suas recomendações e recorre a medicação
alternativa com resultado positivo. Graças à sua vontade de viver e por recurso
à vida de esquemas em que sempre esteve envolvido, cria uma espécie de
associação de distribuição medicamentosa grátis e paralela – os doentes pagam
apenas a joia de sócio - chamando a sua atenção para o perigo do
receituário adoptado em hospitais. Associa-se neste empreendimento ao
Transsexual (Jared Leto) internado a seu lado quando lhe foi detectado o HIV e
que tem por ele uma paixão muda.
Abandonado pelos
amigos, uns no preconceito da doença e outros crentes – como ele mesmo, no
início – de que só acontece entre homossexuais, desenvolve com o transsexual
uma amizade profunda. O filme conta-nos essa tripla evolução: da doença que lhe
vai ganhando o corpo; da sua luta encarniçada na distribuição da medicação mais
certa e que exacerba na razão directa do dinheiro que perde e da pressão que exerce a
indústria farmacêutica; dessa amizade improvável. E tudo nele é esse doente
terminal, corpo frágil, as roupas a dançarem-lhe no esqueleto, o rosto a ficar
ósseo e desorbitado, pele colada aos malares descarnados. Ron Woodroof passa de
electricista cheio de esquemas a doente-furacão, constrói motivos de viver, para si e para
todos a quem distribui vida: injectável ou em comprimidos. E o que mais me perturbou
foi aquele irreconhecível McConaughey. Ou a excelência de um
bom actor. Justeza de prémio!
(Continua)
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