Dentro
da escola, depois de cumpridas as tarefas e da novidade digerida, a atenção
dispersou do Garcia e o ziguezague de conversas ciciadas deu os primeiros
passos entre os parceiros de carteira; em seguida, alastrou aos alunos de trás
e da frente e em breve se instalou um zunzum a fortalecer, entremeado de uma ou
outra palavra clara e distinta. Depois, na pressa dos minutos, foram esquecendo
o lugar e os deveres. E quem passava na estrada distinguia uma algazarra sem
freio, abafada por portas e janelas, e seguia abanando a cabeça, na certeza da
professora outra vez à conversa em algum lugar.
Quando a professora entrou, atentos às desavenças da fechadura com a chave, os
mais próximos da porta aprestaram-se a fingir o bom comportamento que não se
lhes conhecia, e, esquecida a promessa de avisar os restantes, semelhavam anjos
enfronhados nos livros. Lá à frente, a vida era outra. Dois garotos na fila do
meio disputavam um lápis a reclamá-lo aos gritos como seu, cada um puxando-o
para si. Na correnteza de carteiras da parede, jogava-se ao sisudo em grupos de
quatro, virados uns para os outros, numa carranca de susto a conquistar o riso
dos pares. Na fila da janela, duas alunas mais novas ensinavam-se mutuamente a lição, gaguejando sílabas, os dedos a pé coxinho sobre as letras.
A
professora avançou e, sem zanga pelo barulho de quem ainda a não tinha notado, retirou aos beligerantes o lápis da disputa. Quando a notaram,
coalhados em culpa, os alunos varreram conversas e endireitaram-se nas carteiras.
Mas ela apenas: hoje vão sair mais cedo
para o almoço. À tarde, quero aqui toda a gente de bata limpa; penteados e
lavados, ouviram? Vamos acompanhar o irmão da Elisa ao cemitério. Digam às mães
que vão comigo, a pé. E que vos trago depois. Ninguém precisa trazer mala.
Logo
alguns, como se pedras em caminho, minha
senhora a minha mãe anda a trabalhar e não está em casa; minha senhora, a minha bata está rota e a
minha mãe está no trabalho e só chega à noite; minha senhora, a minha bata está de sabão. A professora a mirar o
vermelho das unhas ovaladas e compridas, a mão branca, esguia, à altura dos
olhos, como que numa distracção, quem não
tiver a bata em condições fica em casa. Mas eles num desejo de ir, o quinhão de morbidez acicatado pelo Garcia. Ainda que parte da alma amedrontada, queriam
saber o que era um caixão, um morto, um cemitério do lado de dentro. E foram para casa
a matutar no problema da bata limpa. Alguns resolveram-se ao tanque com um
bocado de sabão azul e lavaram-na sem a passar a ferro que era coisa de meter
brasas e que não sabiam como fazer; os
sortudos tinham as mães em casa: lavaram e passaram, fizeram lume e
aqueceram água para o banho em panelas de ferro, esfregaram-lhes o surro das
orelhas e dos joelhos, cortaram e limparam-lhes as unhas, calçaram-nos para o
caminho. Os que estavam sozinhos, e eram a maioria, procuraram as roupas e
sapatos melhores mesmo que pertencessem aos irmãos mais velhos, lavaram a cara,
as mãos, braços e pernas na água do tanque da roupa, puseram a brilhantina dos
pais e pentearam-se de risca ao lado. E depois de almoço, sem mala, estavam a
preceito na escola. Havia os que se tinham esquecido de lavar a traseira de
pernas e braços, o sujo a vicejar por entre escorrimentos; os que repuxavam
a bata no lugar onde as molas da roupa a tinham vincado; os que estavam ainda
com a bata desabotoada para acabar de enxugar; os de brilhantina a escorrer
rosto abaixo, só penteados à frente; os que se tinham esquecido dos pés descalços ou não tinham outros
sapatos além dos chinelos de sapato cortado que sempre usavam, a brilhantina e
o risco a parecerem fora de órbita, agastados de estranheza, estamos aqui a fazer o quê, não pertencemos.
Junto à porta fechada da escola, uma garota ensimesmava, cabeça virada aos botões de cima, em
solilóquio, a minha mãe não me queria
deixar vir, disse que é muito longe e vamos a pé até ao cemitério. E as
outras, e se a gente se sentar à beira da
estrada a descansar um bocadinho, faz mal? E ela a levantar a cabeça, como
que a acordar do pensamento, em voz baixa para não perturbar o sono dos abotoados, não sei, a
minha mãe não me disse.
Foi um recreio diferente, ninguém brincava com medo de sujar roupas novas, desmanchar o cabelo, estragar sapatos. As raparigas endireitavam o rabo de cavalo ou as tranças umas às outras, enfiavam os dedos por dentro dos canudos, deitavam a vírgula do indicador a uma mecha desavinda e lançavam-na para trás da orelha. Depois, davam um passo atrás a mirar a colega e, assim ficas mais bonita, ignorando a queixa embaciada do cabelo, tirem-me daqui, soltem-me, não gosto de estar preso. Entretanto, o António Manuel corria à estação a ver as horas e chegava esbaforido, a risca desfeita, já passam quase vinte minutos. Mas um barulho de motor a aproximar e logo o carro azul despontou e foi ficando cada vez maior. Então, muito compostos, descansaram.
Quando a professora desceu do automóvel todos repararam que não trazia os sapatinhos de tic tic no andar, requinte de pernas em saltos de agulha, inveja das raparigas. E quando ela o de sempre, António Manuel traz-me os sacos que estão no carro, ele, sim minha senhora, mas não seguiu atrás dela a bambolear-se na imitação dos saltos altos. A professora minguava no sapato raso, uma saia rodada com desenhos que não conheciam. Eles à porta, formados e de mão dada, a encolherem o corpo uns de encontro aos outros para ela passar no tilintar de chaves conhecido e a bichanarem, não é bonita a saia? E a Ana Maria que morava de empréstimo na caseta e era filha do engenheiro da ponte em construção, chegada de uma cidade grande e mais esclarecida, é saia calça, os machos da frente e de trás são abertos – e antes de hipotéticas dúvidas –. Tenho uma saia assim. E recrudesceu-lhes a admiração. A Ana Maria tinha roupa e sapatos bonitos, uma mãe que não trabalhava, usava calças e óculos escuros, fumava, pintava os lábios e quase não se deixava ver. Os rapazes aventuravam-se linha fora a espreitar o insólito da caseta, entre o rodeado dos pinheiros, e desorbitavam dela deitada numa rede, a ler e fumar. A Ana Maria falava-lhes de ignaras coisas como haver um jardim zoológico, contava as férias na quinta dos avós, os passeios com os pais. Parecia um conto de fadas. A Ana Maria que era uma criança simples e bonita e dizia a todos que só estaria um ano com eles e ainda assim gostava da escola e emprestava livros e jogos e ensinava as contas e os ditados. A professora, que não lhe tocava, a advertir constante, Ana Maria! E ela a passar papelinhos com as soluções dos problemas em que era exímia. Ou a dar a sandes de fiambre a quem a pedia por nunca ter visto fiambre, quanto mais prová-lo. A Ana Maria era uma bondade de coração que a mãe entendia e compartilhava. A dada altura, o saco do lanche sempre com duas sandes bem aviadas, feitas em papo-seco e embrulhadas em papel de alumínio que eles desconheciam e pensavam que eram pratas de chocolates muito grandes que a família comia e guardava, esticadas com a unha, lisinhas. A Ana Maria que por vezes se alimentava do manjar dos deuses a que chamava salame e que ninguém conhecia.
Quando a professora desceu do automóvel todos repararam que não trazia os sapatinhos de tic tic no andar, requinte de pernas em saltos de agulha, inveja das raparigas. E quando ela o de sempre, António Manuel traz-me os sacos que estão no carro, ele, sim minha senhora, mas não seguiu atrás dela a bambolear-se na imitação dos saltos altos. A professora minguava no sapato raso, uma saia rodada com desenhos que não conheciam. Eles à porta, formados e de mão dada, a encolherem o corpo uns de encontro aos outros para ela passar no tilintar de chaves conhecido e a bichanarem, não é bonita a saia? E a Ana Maria que morava de empréstimo na caseta e era filha do engenheiro da ponte em construção, chegada de uma cidade grande e mais esclarecida, é saia calça, os machos da frente e de trás são abertos – e antes de hipotéticas dúvidas –. Tenho uma saia assim. E recrudesceu-lhes a admiração. A Ana Maria tinha roupa e sapatos bonitos, uma mãe que não trabalhava, usava calças e óculos escuros, fumava, pintava os lábios e quase não se deixava ver. Os rapazes aventuravam-se linha fora a espreitar o insólito da caseta, entre o rodeado dos pinheiros, e desorbitavam dela deitada numa rede, a ler e fumar. A Ana Maria falava-lhes de ignaras coisas como haver um jardim zoológico, contava as férias na quinta dos avós, os passeios com os pais. Parecia um conto de fadas. A Ana Maria que era uma criança simples e bonita e dizia a todos que só estaria um ano com eles e ainda assim gostava da escola e emprestava livros e jogos e ensinava as contas e os ditados. A professora, que não lhe tocava, a advertir constante, Ana Maria! E ela a passar papelinhos com as soluções dos problemas em que era exímia. Ou a dar a sandes de fiambre a quem a pedia por nunca ter visto fiambre, quanto mais prová-lo. A Ana Maria era uma bondade de coração que a mãe entendia e compartilhava. A dada altura, o saco do lanche sempre com duas sandes bem aviadas, feitas em papo-seco e embrulhadas em papel de alumínio que eles desconheciam e pensavam que eram pratas de chocolates muito grandes que a família comia e guardava, esticadas com a unha, lisinhas. A Ana Maria que por vezes se alimentava do manjar dos deuses a que chamava salame e que ninguém conhecia.
E, quando já tinham entrado, a professora, todos
de pé! – e sem hesitação – Vamos lá
ver se estão em condições. Fora mandar um ou outro lavar mãos ou cara, António Manuel vai lá ver e leva a minha
toalha para se limparem, passaram no exame. O Tóino, minha senhora a mãe da Ana Maria não a
deixa ir ao funeral, ela disse-me para dizer à senhora. A professora sem
os olhar, como se não o ouvira, a aliviar a mala de mão, um montinho de bugigangas sobre a
secretária, saiam e formem lá fora. - subindo o tom de voz - Sem
barulho! – e numa ameaça - Quem falar, fica na escola.
E
eles seguiram ordeiros, na pressa de dar a mão ao parceiro. Ou na ânsia de
conhecer o que não sabiam.
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