Escrevo
aos solavancos. Contra mim. No esforço de quem abre uma concha. Ainda que o
alívio de fazê-lo, a distracção da minha subjectividade a emparelhar palavras,
a poda de “corta e substitui”, o interminável da função, tenham tudo para me
levar à escrita. Porém, só escrevo quando “não pode deixar de ser”. Nem sempre
foi assim. No tempo das cartas, quantas folhas enchi! Ultrapassando as sete folhas, antes de chegarem ao vermelho da caixa do correio, obrigava-as a
pernoita sob o dicionário, para minguar volume. Nunca ninguém me respondeu
verdadeiramente. As minhas amigas escreviam tanto menos e atrasavam a resposta;
quem sabe, liam-me na diagonal, ou nem isso. Como se usa na net se
passamos a dizer olá e marcar presença ou dar opinião sobre. E vale?
Talvez. Porque também as minhas amigas respondiam a uma ou duas das minhas
quarenta questões sobre a vida delas e não opinavam sobre o imenso que não era
pergunta. Porém, eu, inabalável, a abrir-lhes as cartas com a mesma sofreguidão
com que leio os mails em que raramente (nunca) se mostram. Se escrevem.
A
vida é assim mesmo. Nasci demasiado tarde para esta vocação de monge copista em
iluminuras de semana inteira. Por isso, tenho de me aguentar às palavras em
computador e às cartas que são mails, pejados de pps a impar boas intenções e que
pouco ou nada dizem do emissor. Descalça. Portanto.
Para
que escrevo? Porque gosto. E para meu esclarecimento, a escrita elucida, ordena
a cabeça. Mas também para não esquecer. Os portugueses têm o péssimo hábito de
saltar os bons momentos. As agruras e nefastices ninguém olvida; mas, o que nos
alegra o quotidiano, obliteramos. Razão para o trabalho de arrumação mental que,
de tempos a tempos, plasmo na folha onde as palavras, tontas de tinta,
pretextam a sua existência de papel. Mão dada linhas fora, descrevem o que foi
e libertam-se da memória. Ela agradece a leveza. E eu. Que posso voltar. Oh! Extraordinário
ímpeto de regresso!
Quem
sabe, uso mal a escrita. Afinal, o passado é o que já foi e, de certa forma,
inexiste. Mas é o meu como de
saber fazer. É mais fácil descrever o que passou que inventar acontecimentos. Basta silenciar o presente e, logo se instaura desmedida, a diferença temporal dos
rituais. Então, dobramos o imaginário à realidade. Conforma-se. Oh, sim. O
imaginário é o que salva os escritores. Mas não é comum de todos. Ou é neles
mais largo. Diferente.
Ontem foi Dia do Pai. Bem sei que é
consumismo, um nada no amor que lhes temos. Se, porém, retiramos prazer em
presença, por que não festejar?
Amanheci
palerma, no meio de uma gripe esfarrapada, nariz entupido, tosse, dor de
cabeça. E nem me lembrei. Atirei os compromissos para trás das costas e zanzei
pela casa com vontade de coisa nenhuma, possivelmente a desfiar mazelas de viva
voz para ninguém, salvo a gata, num acto purgativo que me entretém e liberta.
Já a manhã aquecia quando liguei o Pc. E isto de haver um Google tem utilidade,
logo dei pelo esquecimento: era dia do Pai. Pedalei um pouco na Net, a meter o
bedelho em aquis e alis que prefiro,
enquanto marcava números de trabalho. Ninguém. Deixei mensagem e comecei a
equacionar mentalmente tarefas e horas: necessitava fazer compras, almoçar,
culinar alguns pratos leves, um bolo…e ir mais cedo para limpar a sala de
refeição. E fui às compras para um lanche a descair para jantar, munida de
minuciosa lista. Que breve se fartou de mim, ainda hoje não sei o que lhe
aconteceu. Há coisas assim, são como certas pessoas, torcidas, desaparecem à parva.
Portanto, fiz grande parte das compras de cabeça, o mesmo é dizer esquecendo
algumas. Uma das minhas convidadas ligou e que sim, que queria ir mas saia
tarde e teria de recolhê-la. Tudo bem. Depois de almoço, e com outro sms no
telemóvel, a segunda também ligou. E que sim, mas tinha reunião. Que fôssemos
lanchando.
Tomei
um comprimido para a gripe, pus o avental e fui para a cozinha. Duas horas e
meia depois comecei a arrumar a tralha no carro. O lanche. E os apetrechos de
limpeza. Fiz mais dois convites e meti-me no carro que tresandava a restaurante.
Fiz nova paragem no super e abasteci as faltas da manhã. E depois rumei ao
destino satisfeita da surpresa, o palerma do bolo a um lado e a outro em cada
curva.
O
meu pai encontrava-se na rua, à conversa com duas vizinhas e nem sabia que era
Dia do Pai (como é que esta gente mais velha vê Tv ?). Saí do carro toda
espevitada, a léguas da matrafona da manhã. E ele, então, o que vieste fazer? Nem avisaste… e eu a abraçá-lo, vim vê-lo, lanchar consigo, mais daqui a pouco vêm os trabalhadores.
Hoje é Dia do Pai. – e rematei a apertar-lhe a gordura da barriga - Gosto muito de si, Pai.
Juro
que o meu pai se engasgou com aquele pigarro que tem quando se atrapalha e não
sabe o que dizer e que os olhos piscaram até ficarem pequeninos. E aguaram.
(continua)
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