Decidi-me por esta exposição logo no início.
Sugeri, convidei e acabei em planos solitários abortados uma vez e outra porque
sim. Até acontecer. Que os museus vêem-se a sós. Mesmo em visita guiada. Mesmo
rodeados de amigos. São lugares de pausa e respiração profunda, abrem em nós
solilóquios de abismo que escorrem dos quadros se ousamos franquear-lhes a
porta.
Pouco me liga à pintura dos séculos XVI
e XVII; o museu de Arte Antiga não me percorre o sangue nem humedece os olhos.
Mas apazigua a alma, oferece o fôlego de sombra fresca no estio. Olho-o naif, a prescindir visitas guiadas sem desdenhar da aparência, a
querer surpreender-lhe lampejos do que me alimenta o espírito.
Comecei pela pintura nórdica do século
XVI. E siderou-me a imponência do céu em extensões de azul cordato, por vezes
atravessado de nuvens pueris; amachucou-me a não importância de edifícios e
homens colocados à boca da pintura, diminutos no vasto celestial. Que difícil ser humano neste tempo! Depois, aproveitei e revi os canais que atravessam
cidades e aldeias e os efeitos da luz sobre a neve e o gelo. A vida é
bonita para quem consegue vê-la. E quanto o viver pode travar a visão!
Por outro lado, no mesmo período, a
pintura italiana expandia-se na paisagem ora a exacerbar dramatismos ora em estado lírico. As
montanhas sobem nos quadros meias ser vivo, dramáticas e lancinantes; ou
apresentam-se em quase sonho. A tonalidade
azul rosada de alguma pintura é um lirismo de devaneios irisados a sobrepor-se
à realidade, as nuvens atravessadas a
projectar sombras de tinta. Nestas obras, para além da sugestão de densidade
inamovível das montanhas, destaca-se a dimensão das árvores. É o caso de Simon de
Viegler que as mostrou agitadas, sofredoras, empurrões de vento a inclinarem
ramos; e elas descabeladas, esqueléticas, mil ímanes a prenderem a angústia de
quem passa aos troncos feridos de fúria natural.
Por fim, Rubens e a eterna surpresa de
cruzar luz e sombra; de um entardecer estar completo na cor de uma árvore, de
assim haver a luz amarelo doente dos crepúsculos. Olho Rubens e compreendo
porque se diz, “Em Itália pintam a luz”. É tão outra a luz de Rubens!
Entretanto, uma pintura de Adão e Eva acenou-me
de um paraíso escuro e folhudo. A primeira mulher, uma desnuda leitosa e
irradiante, a oferecer a displicente maçã ao parceiro de deslavado e
contrafeito semblante. E não há como olhar o quadro sem a sensação de que está
propositadamente todo errado. Pareceu-me até ouvir um riso escarninho a desprender.
Uma brincadeira de artista.
Já no final, um outro quadro me alcançou:
“A caça”. Por entre aquele mundo androceu
e de poder canino, uma mulher na sua montada. Por que razão um pintor do século
XVII coloca uma mulher a apreciar o triste espectáculo que é perseguir uma
lebre espavorida e semimorta?! Talvez um guia me esclarecesse. Mas o tempo.
Então, guardei a tarde e regressei-me.
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