Não sabiam ainda o caminho louco do desgosto, carro desgovernado que pisa
sem dó e a esmo; ignoravam-lhe o ser de erva ruim em comprimentos de raíz
invasora. Mais tarde, o aguilhão da dor havia também de perfurá-los e
lembrariam esse primeiro balbuciar só presente aos olhos, exterior. Postos em
formatura, o espanto emudecia-os na atenção ao cicio das vizinhas que se perdia
entre as mãos dadas, a mãe não está capaz de fazer o caminho a pé, já
desmaiou e tudo. E um coro de tragédia retorquia em surdina, coitadinha,
já nem tem forças para chorar. Depois, olhos a errar pelo grupo,
como que descuidados nas batas imaculadas das meninas ou a acertar no
quadriculado dos rapazes, um anjinho tem que ser carregado por outros
anjinhos; mas alguns são tão pequeninos, coitadinhos dos gaiatos. E a Laura
a ouvi-las e a calçar-se muito depressa, um lenço da parceira sob o calcanhar, ai
isto dói-me tanto.
Entretanto, a D. Vitória, uma lágrima teimosa a escorrer sob os óculos que até parecia que tinha nascido dos aros, aproximou-se com a Elisa pela mão, ela vai com vocês, e
todos a quererem dar à mão ao vestidinho preto, eu, eu, eu, dá-me a mim
a mão, se quiseres dá-ma antes a mim. A professora veio vindo do nada onde
se escondera, a apertar o lenço sob o queixo, delicadeza de dedos na seda e, a
Elisa dá a mão à parceira –. Avançou um braço e trouxe o vestidinho preto pelo ombro, até ao lugar;
a parceira a sorrir a medo sem saber se sorrir seria demais para quem tinha a
morte em casa, o braço branco a cruzar o preto e a trazê-la ao exacto
da forma. A seguir, desceu o braço dado a puxar-lhe os dedos para os seus e a
entrelaçá-los fechando-os com a mão livre, um a um, sobre a sua mão, como
tanta vez tinham feito, num pacto de união silenciosa. E a boca da Elisa, tão
pequenina no meio do preto, entreabriu a mostrar os dentes de leite. Então a
notícia do sorriso correu de uns a outros, a confortá-los, a Elisa riu-se para a
parceira. E aliviaram, já tinham feito uma coisa boa.
D. Maria dos Anjos, alheada das entrelinhas, mirava-os a comparar cabeças, Vou
escolher os primeiros a pegar no caixão; lá à frente, paramos e vão outros. Se
alguém não quiser, diga. Porém, desconhecendo o que era um morto ou um
caixão, ou talvez mais por isso, todos queriam e, sim minha senhora,
sim minha senhora, os rapazes a endireitarem argúcias na tentativa
de inaugurar a experiência. Anteviam-se em gabarolice, fui o primeiro e
não tive medo nenhum. A professora separou quatro e refez a forma, venham
atrás de mim. E entrou com eles em casa. D. Vitória, que desfiava
distraídas contas de um terço a que só por bom comportamento os garotos tinham
acesso, ter-se-á lembrado de alguma coisa porque se moveu em pressas de
passinhos desasados nos seus sapatos-barco e fechou o cortejo da professora.
Então, as vizinhas disseram umas às outras, vai sair, e
prestes fecharam portas, um olhar rápido aos cacaréus da rua, a esconder sob as
flores isto e aquilo que julgavam de valor e ninguém quereria. E os garotos da
escola, olhos pregados na porta. Em espera.
A primeira a voltar foi a D. Vitória. Eles espantados, uns para os outros, ela
traz um moxo para quê?! Nenhum sabia. Disseram-se surdamente, ela
é que é esperta, é para se sentar de vez em quando, que custa muito a andar,
coitadinha. Em seguida, o pai da Elisa com uma caixa branca
comprida e uma mulher toda deitada sobre ela, agarrada às pegas amarelas e a
repisar a premência de parar o tempo, não mo tires, não mo tires, não
me faças isso, dá-me só mais um bocadinho com ele. Então, a D.
Vitória colocou o moxo no chão da rua e o pai da Elisa poisou-a. A mulher
ajoelhou abraçada àquele volume branco a murmurar nomes pequenos de, meu
queridinho, meu queridinho..., a Elisa correu para ela num repente,
esquecida da forma, e toda a gente a fungar. Até que o homem se baixou,
agarrou a mulher com os dois braços, levantou-a em peso e ela entornou a
escorrer o desgosto por cima dele, como um cobertor ou um alforge que se
põe às costas a pingar. Porém, à voz da professora, cada um pega numa
asa, ela num pedido só de lábios a mexer, não. Esperem…. Desprendeu-se do
amplexo, ajoelhou de novo à beira da caixa com desenhos dourados, tirou a
tampa com cuidado, pôs a mão dentro dela que parecia que queria lá deixá-la e
disse num sussurro quase inaudível, levem-no assim, que ele gosta tanto
de rua. E desfaleceu.
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