“O
homem põe e Deus dispõe”. É atordoante. Como se uma entidade exterior – Deus - seja
constante na mensagem de “não pode ser” ou “eu não quero o que tu queres” ou,
em leitura mais realista, “o mundo não obedece à tua vontade”. E isto irrita
quase tanto como unhas a riscar no vidro. Mas existe. Vamos até prescindir de
um Deus que tudo pode e vê – como distorcer-nos o campo do agir e modificá-lo. Cinjamo-nos
a esse emaranhado de relações interpessoais talhadas no imprevisto da imanência;
atendamos aos acasos de existir. E compreendemos que projectar não é realizar;
e que a antecipação do futuro pertence-nos bastante mais que ele. A inscrição
do projecto no presente obriga-o a conformar-se à realidade. Foi o que me
aconteceu no concerto de Páscoa.
Era
ainda Natal quando comprei dois bilhetes e ofereci um deles. Depois,
aproveitando uma série de coincidências nessa data, marquei um jantar com
amigos. Mas o acaso, que às vezes nos persegue, truncou a refeição e também a
companhia no concerto. Não desisti. Em cima da hora ofereci-me e ao bilhete
para João Sebastião Bach, A Paixão segundo S. Mateus. E fomos aceites. Eliminado
o jantar, limitei-me a propor uma visita prolongada a um sorriso bonito e suave
que muito prezo - Maomé não podia ir à montanha.
No
dia do concerto, perdi-me a escrever qualquer coisa, atrasei e cheguei
esbaforida à Gulbenkian ainda os carros das televisões não tinham saído - decorrera uma conferência sobre o 25 de Abril
com gente de altas esferas, bem mais importante que um Cristo morto há tempo
demais. A minha companhia aguardava-me na entrada. Amei aquele encontro, “quem
sabe se não é melhor assim”. O auditório em completo silêncio mal os músicos e
os coros entraram e o eu que é mim a encantar na paisagem do fundo. Na quietude
clara da tarde, o jardim da Gulbenkian detinha uma aura de graça japonesa: debruçava-se-nos. As árvores em
arcos de flores semi abertas que abriam esboços de nuvem rosada e pontilista, a
emergir do veludo verde da folhagem. Em grande plano, um arbusto oscilando
exuberâncias de alva floração. E os pássaros. Em sua casa. A voarem-nos à
frente. Dolentes e sinuosos, rémiges em leque. Dei uma olhada ao palco e, lá
atrás, bem no meio, um coro infantil vestido de vermelho.
Depois
a música cresceu e fui sendo levada. Deixei de sentir-me como ser individual,
transportada a uma angústia do universo, como se conseguisse encarnar todo o
sofrimento e toda a esperança do mundo. Ali, no meio da atenção de tanta gente,
sou a voz dos que não puderam ouvir nem ver, dos que sofrem, dos mortos que
vivem em mim o seu impossível. Oh, excessiva gente que reúno! Somos nós todos
que choramos as lágrimas de Pedro e o seu arrependimento comovido; e, se cruzo
os dedos no solo da flauta, não são apenas os meus dedos cruzados. As notas
arrancadas aos instrumentos não nos levam ao colapso; tem de acrescer-lhes a
força das vozes em uníssono, a destruir barreiras, corroer muros, evadir.
É
sempre uma surpresa a interrupção, seja intervalo ou fim. Saio reabilitada, a
interessar-me por quem me acompanhou e esteve afinal mergulhado no seu mundo
paralelo. Saímos em passos indiferentes de caminho, a comparar percursos da
alma que desvanece nas sendas do ser.
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