Um
ramalhete de acasos e decisões levou-me a
ver “The Danish Girl”. Em boa companhia. Afinal, é a época especial do
cinema, a de melhores filmes. E alguns se me dependuram em olhos e mente a suplicar,
estamos aqui, vê-nos, vê-nos, não nos percas por nada. E etc. Pendo para filmes
centrados em figuras femininas (se não o são, involuntariamente os centro),
aprecio-lhes o rigor nos pormenores de interpretação, o ambiente geral onde se
movem e o espectro de atenção a sentimentos e emoções. E depois, permitem-me – quase sempre - fugir às cruezas modernas da câmara viciosa de
violência física e em exercício de preclaro sado-masoquismo realista: sangue que espirra, miudezas à vista, o lado
maligno numa excitação rubra que põe a léguas a sofreguidão de qualquer cena de sexo ou amor urgente. Serei uma retrógrada do pior, mas
convenço-me que a maioria das fitas puxam à violência aberrante. O pêndulo
oscila entre a premência sexual em seu
lado de prazer obtido por embate e que nele se compraz, e o despelotar ilimitado
do mal. No cinema e na literatura, o mal é filão que não esgota. Sendo finito,
não conhece freios e, nesse aspecto, ultrapassa largamente os aspectos sexuais
que também invade. Thanatos e Eros. Ou a conjugação das forças que nos orientam.
Desta
vez, a contrariar ímpetos de ilusão e desmentir a fábrica particular de
realidades paralelas que me habita e lesta desenhava uma amizade redentora entre
duas jovens, a danish girl a sobressair,
fui ler a sinopse. E não era a mesma coisa. Mas também era. Portanto, avante.
Um factor de peso foi saber que o actor principal era o Stephen Hawking de “A
Teoria de Tudo”, no que então considerei um desempenho brutal (bem premiado) de
um actor brutalmente jovem, o que lhe
aprimora a qualidade.
Enfim,
sentei-me no escuro dentro da ideia muito vaga do tema. A homossexualidade está
tão presente nas nossas mentes – por lutas, conquistas, exibições e o mais - que pouco nos detemos nos transsexuais. Não
estava preparada para o drama. Aquele. O verdadeiro ele. Sabia de um casamento que se desfaz por haver, a dado passo, duas mulheres nele. E
de uma amizade incondicional. Não intuí o drama do corpo que não se
tem e se quer ter; os gestos que fazem falta e se amam, mas de que não houve
apropriação; a necessidade daquela aura de feminino, respiração tão desejada que incomoda quem está na cadeira. Serão
assim, os transssexuais?! Não sei. Não sei mesmo. Penso: eu como seria se me
educassem para ser rapaz. Ao roçá-la, usaria
os meus dedos de sentir que a seda é macia e passa à frente, ou eles seriam
antes dedos felizes a festejá-la mansamente, como a amante delicada. Mas é que
não é o mesmo. O sujeito do filme é todo homem por fora e mulher por dentro. Com educação de rapaz eu seria ainda mulher por dentro e bastante
por fora. Logo, o exemplo não serve. Mas a vertente dramática e preferencial voa-me
para situações deste teor, onde o parecer diverge substancialmente do ser e tal
clivagem magoa mais que ferida em carne
viva .
A
dada altura, Einar vai olhar uma prostituta para lhe copiar, desajeitado, os gestos
de sedução, imaginando-se nela-mulher e provoca no espectador uma espécie de incómoda
piedade. Não há ali voyeurismo. A Einar interessa a naturalidade do gesto, a
glória e o cetim da pele que não estão senão do outro lado. Oh, não é apenas a
satisfação do escuro a proteger o segredo. Essa é a não importância. Há na
repetição dos gestos, a ilusão não iludida de “eu sou ela”, uma procura de identidade sobraçada por um
simultâneo de inveja dolorosa e
consciente do quanto o querer não pode. E o actor é extraordinário na sua
figura tímida e quase fugaz, nos gestos medroso, na falta de confiança, na urgência de se viver mulher.
E
no entanto o filme sofre de todo o mal do cinema, centra-se em dois seres e na
sua relação; esquece o mundo adverso e o conjunto de tramas menores que
acompanham um escândalo deste tamanho na primeira metade do século XX. Porque tais figuras existiram. Einar e Gerda Weneger eram pintores e ele morreu a tentar mudar de
sexo, crente nos poderes da medicina.
Como
não podia deixar de ser, liguei-me àquela jovem, vivi o seu amor desde a
ignorância feliz (será que nunca dera por tal?), vi-o entristecer, barafustar
e depois, acomodar-se à circunstância. Pergunto-me o que teria sido do Einar do
filme sem Gerda. Amei a forma como ela quase levou o ex-marido pela mão, a irmaná-lo e ensinar-lhe
o caminho do mundo no feminino, por vezes quase em monopólio, a apertar, a
apertar, porque o amor não se resigna mesmo se diz que sim. Como o acompanhou
até ao fim. Tom Hooper já me agradara em “ O Discurso do Rei”. E continua.
O certo é que há duas raparigas dinamarquesas
a defender o filme. De igual para igual.
Gostei imenso do filme. Fui vê-lo com uma amiga e saímos de lá fascinadas.
ResponderEliminarAchei o filme muito bem concebido. Não consigo imaginar o que será ser-se mulher num corpo de homem ou ao contrário.
Acompanhei Einar e Gerda com imensa ternura. Apreensiva por eles, ao mesmo tempo, "torcendo" para que as coisas corressem bem.
Gerda foi de uma enorme coragem e ao mesmo tempo despojamento (será o mesmo que amor verdadeiro?) ao apoiar Einar até ao fim. Sabendo que perderia definitivamente o companheiro. Para mim é um belo filme de AMOR.
É. Também vi o filme com uma amiga e ambas gostámos bastante. Vai ver "Carol" para comparar. Porque são diversos apesar da temática parecer próxima.
ResponderEliminarGosto de te ver por aqui, andorinha, na minha casa mesmo minha:). Obrigada. Vou tentar não me esquecer dos comentários:))