Desde
cedo tive simpatia por revoluções. Em garota, o facto histórico que mais me
movia era a Revolução de 1640. Mas, em história como na vida, os factos
sucedem-se. E, por muito que o destino
possa vir ainda a castigar-me, nada me agrada tanto como viver nesta era e ter
assistido, já com algum tento e juízo, à Revolução dos Cravos, em 25 de Abril
de 1974. Que, logo ali, na sua imperativa factualidade, eclipsou a de 1640 e mais todos os conjurados
e traidores. Não que eu soubesse em profundidade
o que era uma revolução ou fosse uma democrata. Nada disso. A palavra
democracia só a tinha estudado na antiga Grécia, por ser o regime da
cidade-de-estado de Atenas e pensava eu que estava fora de uso, e fosse apenas uma
boa experiência exclusiva dos gregos de antanho (era assim, a minha ignorância).
Como
à maioria dos portugueses, no dia 25 de Abril de 1974, a revolução e seus adereços apanharam-me
desprevenida. Não entendia as marchas
militares que a rádio passava sem cessar enquanto as ruas de Lisboa estavam em
polvorosa: blindados a passearem pela Baixa, militares despidos de rispidez que
acamaradavam com o povo; civis como
formigas, incontíveis e inúmeros, pendurados em todo o lugar do largo do Carmo,
empoleirados em árvores e fontes, a esgueirarem-se pelos meandros do cordão
militar, querendo espreitar a história em directo. No ar, uma alegria
expectante. E breves relâmpagos de Salgueiro Maia. Eu, mais tarde, a olhá-lo incauta, deve ser
algum sargento que manda nos soldados (lamento, Maia, mas o meu mundo só tinha
sargentos e soldados). Mas afinal era o capitão de Abril a quem devemos tanto.
Que, apesar da conjuntura favorável, uma revolução sem sangue e que empunha
flores, só num país de poetas e à beira-mar plantado. E o gesto de alegria das
vendedoras do Rossio e Terreiro do Paço virou senha. E o primeiro cravo branco
virou rubro. E toda a gente usava um cravo. Por ser bonito. E porque as flores
dizem melhor que nós o contentamento. E porque, noutros lugares do mundo,
outras revoluções as tinham usado. E depois os tiranos, bem à portuguesa, foram
exilados e seguiram para Brasil e Madeira que mais pareciam destinos de férias.
Nesse
período, viveu-se um irrepetível tempo de acreditar. A força de Abril abriu no
coração dos portugueses uma esperança de dias melhores. E assim nos irmanou. É
dessa crença conjunta que tenho saudade. Dessa irrupção da crença a dinamizar a
vontade de mudança de um povo ainda sem divisão. Porque o povo, a grande massa anónima a que
pertenço, pouco sabia de formas de governo. Mas a vida era tão arrastada que
agarrou a mudança e fez dela bandeira. Acreditou. Nesse hiato inaugural, os
portugueses juntaram-se em aspiração e
desejo. E era ver actores e actrizes em euforia, desfilando pelas ruas de mão
dada a gente anónima; ou, à porta do Forte, Sophia Andresen, a Poeta, que
aguardava com outra gente, florinha na mão, delicada como ela só, a saída dos
presos políticos em Caxias; e Mário Soares, e depois Álvaro Cunhal, em regresso
apoteótico, saudados não apenas por socialistas e comunistas, mas por tanta
gente que os não conhecia e assim homenageava quem por ela lutara e sofrera na
sombra; e Manuel Alegre, o trovador da voz profunda, exilado na Argélia, a
escrever poemas de saudade incomensurável a Portugal, como a Trova do Vento que
Passa, “Pergunto ao vento que passa/ notícias do meu país/ e o vento cala a
desgraça/ o vento, nada me diz”, versos que devieram canção na voz única de
Adriano Correia de Oliveira; e a alegria solta nas ruas com o regresso dos presos
políticos, gente sofrida mas vitoriosa e cheia de vontade de viver em paz e
liberdade; e a liberdade de expressão de que os jornais faziam alarde e antes
desconhecíamos; e os cafés cheios de gente e discussões sobre tudo, sem tabus.
Empolgava-nos o entusiasmo de estarmos a escrever a história e viver a novidade
chamada DEMOCRACIA, termo de origem grega – nasceu mesmo em Atenas - e que significa um regime político onde o
poder cabe ao povo. Em democracia, o povo elege os seus representantes através
do voto.
Depois,
contra ventos e marés, um novo governo e a vida do povo a melhorar. As
manifestações, os sindicatos, a militância política, o conhecimento. E tanta
palavra nova, tanto mundo que desconhecíamos e ninguém nos contava. Quanta luz
Abril nos trouxe! Lembro sem exaustão o Serviço Nacional de Saúde, gozo de
férias, optimização de horários de trabalho, ordenado mínimo, subsídios a quem
mais deles precisa e a protecção do Estado aos mais desfavorecidos, a
generalização da educação gratuita...e a Liberdade para pensar e decidir como estar
na vida, a liberdade crítica do
pensamento, essa possibilidade infinita que os mais novos usam sem saber que
crescemos em parte privados dela, num mundo de autoridade temerosa e em que
“não se podia falar”. E quanto não se pensava por nem sequer sabermos que
existia! Porque o respeito só em democracia existe. No mundo do déspota reina o
medo e a ignorância, não o respeito.
O
reino do medo passou. Cabe-nos o dever ético e cívico de ensinar aos novos o
respeito que conquistámos no dia 25 de Abril de 1974. Ou nada aprendemos com a
História.
Abril,
sempre!
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