Encanta-me
a naturalidade com que toda a gente posta sobre temas que, pensando bem, podiam
ser os meus. Só que não me ocorrem. O certo é que, marginais ao grau de
interesse, mal penso num, as palavras me saem inóquas e sem graça, uma espécie
de perna de boneca esquecida na dobra do sofá, que se retira para não
incomodar. O meu respeito por elas tem a humildade dos intocáveis, a casta indiana mais baixa,
considerada tão indigna que recua varrendo o chão que pisou a fim de apagar as
pegadas e por não poder virar costas a quem é de casta diversa; mas, como não
posso dar-lhes as costas ou recuar – ninguém nesta vida pode recuar, o tempo
não nos dá esse gosto – apago, sacudo o rasto de borracha no papel, e vou à
minha vida. ‘A minha vida’ é um modo de dizer, não há nenhuma
vida que seja minha. O que há é eu a fazer de conta que é meu o que talvez nem
tenha dono. Os determinantes de posse nunca foram saúde; a posse é uma espécie
de bactéria alojada que não encontrou a sua penicilina.
Por
outro lado, o tempo gasto na blogosfera maravilha-me: são centenas de
afirmações e negações convictas, e até nos pequenos desabafos, perpassam as
certezas que me fogem. Se houvesse uma osmose mental, colava o nariz ao écran do portátil e, quem sabe, as certezas
encanavam e subiam por inalação. De modo que, se por acaso alguém me fixa, sou
um certo poema de António Ferro, “Não
sei viver/ nunca soube viver/ sou um relógio que pára de quando em quando/
falta-me o ritmo, a continuidade…” e
interrogo-me, será que deu por isso, que me viu o ponteiro dos minutos parado?
Ou, por sorte, fixou-se no das horas? Nessas alturas, disfarço como posso, sem
a âncora de um assobio que me salve.
É
por estas e por outras que resolvi falar também da minha gata. Tal e qualzinho.
Ao invés de mim, a gata sabe o que quer e tem um querer donairoso. Não tem
raça, estirpe ou pedigree. É inteira e sozinha, e dá pelo nome de Gata. E, como
em amor acontece, tudo nela me é um gosto. A paciência caseira, aspirante
saudosa de ração; o olhar de enigma, rasgado em contas de transparente azul; a
fundura abandonada do sono; o seguidismo lânguido, todo atenção e silêncio,
olhos em vincos de ternura semicerrada; o jeitinho macio de, sem palavras,
focinhito espreitando no postigo, me informar que regressou e quer entrar. Mas,
o que mais me quebra, é a exuberância de alegria rebolada com que me acolhe se
saio à rua, as corridas na frente das minhas pernas, a subida travessa aos
arbustos e árvores mais próximos numa exibição de festa retumbante. E, como
disse Pessoa acerca de um humano Menino Jesus, por que razão não há-de a minha
gata chamar-se Gata?!
(texto
adaptado de outro que escrevi em tempos)
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