No
Alentejo, os dias andam ao pé coxinho e é
mais lento o grão a grão no estrangulamento da ampulheta. Contudo, alheio ao vagar
do espartilho temporal, o trajecto dos fenómenos humanos é semelhante em todo o
lugar. Por exemplo, a coscuvilhice que grassa em tempo embatucado e indigesto,
faz-se necessidade social. E é injusto reduzi-la ao mundo feminino, cusquice
não tem género e aprende-se de uns a outros, num agitar vivaz das águas
comunitárias. Numa aldeia, provoca estremeções, faltas de ar e de coragem,
compaixões e simpatias ímpares, lágrimas em corda. E outros desvarios. Mercê deste exercício contumaz do conversedo,
surgem mudanças insuspeitas. Todos os homens são devedores da cusquice. Como
sujeito ou como objecto, a demarcar-se ou a embarcar em aceitação acrítica, ela
molda-o. Corre-o sem originalidade. Primeiro, as novidades são comentadas,
escarrapatadas como osso atirado à fome, em perseverante atenção de língua que
faz caminho até à última lasca de fêvera.
É nesse período que toda a gente ajuíza miudamente e forceja por
acrescentar. Depois, é como se a fome de conversa sofra desgaste à medida do
aumento de rotações da Terra. E, por ausência de acrescentos e de gente que o
receba em embrulho de novidade, o assunto deixa de apetecer. Aborrece. Cede
lugar.
Mesmo
nesses que a língua sovou, ensaboou, esfregou, torceu, a vida desenvolve
mecanismos de compensação que amortizam desgostos, aconchegam consciências e aplacam
paixões e amores. As iras viram ódios mansos ou apenas más vontades e resolvem-se,
quase sempre, com tréguas que se tornam paz definitiva, ou vêm a terminar em simples torção de pescoço odiento a
impedir-se de ver o odiado; ondas de tempo limam arestas aos desgostos insolúveis
que pousaram no banho-maria das lembranças; os sonhos, mudados em soberanos
impossíveis, giram na estratosfera e a alma guarda-os etiquetados e quiméricos,
“O que não pode ser”. Contudo, foram alguma coisa: sonhos.
Na
aldeia, as folhas de jornal serviam a embrulho de sabão azul e outros artigos de lavagem. As notícias, em
regra, eram locais. Corriam de boca em boca baseadas no diz que diz colhido na
mercearia, na taberna, na igreja. E era rastilho que chegava a todos os fogos,
acrescentado de uns lados, rasurado de outros. Havia quem se aproveitasse do
corre corre das novidades e, à sombra do quase anonimato, desse voz a ódios
antigos e invejas malsãs. Se a difamação era de peso e encontrava gente honrada
e de princípios, morria no posto da guarda nacional republicana onde os guardas
não se coíbiam de uns sopapos em caso feminino e duras sovas se masculino. Além
disso, multavam os provocadores e, em casos mais graves, provavam o calabouço.
Difamar, era sistema de linguarudos mentirosos que viviam galhofeiros e destravados de boca e consciência. Mas o
balanço das novidades fazia-se na oralidade, cada um no seu papel, passando o
testemunho. Depois da visita a meu pai foi um nunca acabar de perguntas. A
reabilitação da nossa família começou,
como era de regra, numa salutar cusquice. O mérito coube a minha mãe e sua tristeza
desalentada, por via das condições em que o achámos. Depois de muito preocupar e inquirir, a aldeia
transmutou. Meu pai virou história aceite e condoída e reapossou do nome; eu,
deixei de ser “a filha do comunista”; minha mãe regressou à sua condição de
mulher casada com marido ausente. O grupo envolveu-nos num abraço compreensivo
e a cusquice amorteceu, mudada em lamento e apoio. Adaptei-me com veemência a vivermos as duas e
gozei quanto pude o papel de vítima, deliciada
por ser objecto de tanta atenção e olhar penalizado – extensivos à escola e até
à professora -, e propus-me, sem a arte de Lídia, esticar a situação quanto possível, sem reparar que
era simples beneficiária dos eflúvios acarretados pelas parcas conversas
maternais. Entretanto, presa do crânio descabelado e ossudo e da magreza de meu pai sob a roupa, temerosa do ar
bovino dos guardas prisionais e daquele mar que não me descansava, neguei-me a
voltar a Peniche. Decisão sem préstimo, que nem a minha mãe foi permitida nova
visita.
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