No
entrementes de meu pai preso, das classes uma atrás da outra e das fúrias
crescidas da mestra que desmediam sem porquês, eu, Luís e mais dois ou três
garotos, despedíamo-nos da escola primária; Lídia seguia-nos na classe atrás. Vivia
empenhada em caracóis rebeldes que
penteava contínua, o corpo arredondando em lugares súbitos que me evidenciava
sem rebuço e a ferver de orgulho, a baixar e levantar peças de roupa. As
precocidades de crescer obrigavam a mãe a milagres com as velharias da irmã,
que ela passeava em displicência de olhar e passo, namorando o pátio dos
rapazes, qual rainha entre plebeus. As
mudanças assentavam-lhe e ficava ainda mais linda.
Nos
intervalos caseiros, entretinha-me a ler os livros da emigrada filha de Madrinha
Carmelita, a pares no fundo do saco das maravilhas e que eu recolhia prestes, mal a velhota despontava nos degraus da carreira. Despida de
verdadeiro interesse, olhava o início de curvas da minha amiga com alguma
curiosidade. Sentia-me plena no meu corpo de criança e, por mais que os
exemplos me entrassem olhos dentro, descria, em mim, da afecção de mudança tão traiçoeira. Despontava-me
o traço de “não te rales e deixa andar” nas banidas preocupações com o corpo. Antes
me afligia haver uma prova oral no exame obrigatório que ocorria numa escola da vila, nós avaliados por ignotos professores e em
ambiente estranho. A importância do primeiro exame era gancho preso na mente,
acicatava. Na volta para casa, eu e Luís discutíamos com alma a malfadada prova de aritmética e as soluções
esquemáticas dos problemas que adivinhávamos, dando prioridade a torneiras
abertas para tanques que, em simultâneo, enchiam e vazavam, facto que observávamos
com frequência na Quinta dos Sargaços. Enquanto deslindávamos contas e mais
contas, eu revia as tardes acaloradas em que nós de mãos dentro do tanque e o
hortelão de olho, ainda assim não sujássemos a água, colhêssemos as desejadas cerejas,
nos escapulíssemos ao pomar onde as laranjas do tarde convidavam o pálato. Mas
nós ocupados a sentir a frescura líquida a correr-nos as mãos, a seguir com os
olhos as libelinhas às cores feitas avionetas sobre o espelho de água, a observar os pequenos insectos caídos, aflição a estrebuchar no tanque, e
a salvá-los ao despique, palhinha estendida às suas patitas gratas, já
salvei mais que tu. E o vulto escuro dele em gestos de enxada maquinal, a encaminhar
a água pelos regos, aqui abrindo comportas e fechando ali. E nós cá em cima, um
desejo de éden a perseguir-nos o espírito, as proibidas cerejas oscilando nos ramos a um metro ou dois das
nossas cabeças, qual suplício de tântalo; e aquela vontade nunca satisfeita de
subir à cerejeira. Ou só com inveja dos pés dele, assim descalços e molhados, frescos.
E, à medida que o número de contas aumentava nos problemas, este tinha cinco contas
vamos inventar um de seis, eu atentava no claro som da água junto ao poço,
entrelaçado no chiar da nora e revia a concavidade em circunferência de ferraduras a
toda a volta, produto esforçado de silencioso
pisoteio da mula vendada. Parava os olhos na água transparente
dos alcatruzes que despejavam a respingar para a calha, glu, glu, glu. E logo
ali à frente, o jorro manso e ininterrupto caía em alegre murmúrio do tabique para o tanque. Do outro lado, sobre o bordo, a grossura de uma rolha de cortiça envolta em trapagem que escorria a espaços, dava sinal de vazamento para a regueira delatora, chão escuro e molhado, dois murinhos esquinados a fundo de enxada. Matutava que o hortelão desconhecia os
litros de água dentro do tanque, os que corriam por minuto para a rega, e tampouco lhe importava a quantidade de água que a mula puxava lá do fundo escuro do poço
onde havia um líquido como breu que, à superfície, se mudava em água; assim, numa espécie
de milagre de que nenhuma conta tirava a prova. E, lá dos interiores do eco, uma avenca ou outra a verdejar alegrias, acenando falsidades de aqui é que se está bem,
quando aquela parede lismosa e íntima só a elas agradava.
Enquanto vivia esta duplicidade, e a par de Luís amontoava contas sobre contas, cheias de horas e minutos e mais uma data de litros de água que mudávamos para decilitros
ou quilolitros apenas para complicar, Lídia cansava-se de nós e pavoneava na
frente, a mala a dar a dar. Luís, também ele atento a dois assuntos, seguia-lhe
o balanço. Junto a minha casa, avançava até ela e encontrava recados e motivos para lhe fazer companhia. Se acaso o via regressar, puxava da bicicleta e desaparecia num
arrepio, os pedais em vendaval. E eu enfronhava no quotidiano e
esquecia-os até ao dia seguinte. A meu modo, era feliz e não pensava na forçosa
separação da trempe. O écran gigante do exame absorvia-me a realidade.
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