O
cemitério português é uma chatice cheia de pedras e jarras pesadíssimas onde
nascem flores plásticas. Não aprecio cemitérios. Como diz um frade conhecido,
não mora lá ninguém; ele não tem lá que fazer, eu, por acaso, tenho. E hoje calhou
ir a um. Como os mais, sem vivalma. Era eu e o bem aventurado sol que, decerto
por me ver só, quis acompanhar. E as minhas tarefas domésticas. Sim, aquelas
mesmas de limpar pó, lavar, varrer, arrancar ervas daninhas que medram à velocidade
da luz em lugares adubados. E não garanto, mas quase aposto que os sardões
amarelos e verdes que se assustam comigo e eu com eles ainda lá passeiam pelos
subterrâneos. Haja Deus que hoje nem havia calor em demasia e não se quedaram de
olhinhos desconfiados a olhar-me de lado, que é só como sabem olhar, e o meu coração
logo na garganta que nem sei como é que ainda consigo dizer ai e saltar para
trás com pernas de mola enquanto eles somem numa repelência que me dispõe ao
vómito. E posto que sózinha e avoada, esqueci o chapéu e tive de aguentar-me à
soalheira (solinho não amofines que bem sabes a falta que me fazes e o agrado
em que te envolvo). Eu lavando e lavando as moradias empedradas (coitadinhos dos
mortos soterrados lá em baixo) e a pensar nos meus chapéus tão pipis, que me
emprestam um certo quê e sou pata que fica menos pata. Pronto, é isso, o
cenário é de valor negativo e penso em coisas positivas, como uso antes de
adormecer. Entretanto, também esqueci o elástico de prender o cabelo e lá andei
no meio do mato, pouco vendo de pedras e jarras. Quer dizer que o franjado me
esbateu os rigores da compaixão. E quanto o meu chapéu de gordo laço preto e
aba derrubada me faria outra! sombreava-me o olhar cujo me faz muita falta, mas
nada perde em não ser visto; e aposto
que as maçãs do rosto iam parecer geradas no glamour da Paramount ou por aí, e
em tudo opostas ao jeito de mexicana pobre e sem cintura que me cabe (falando verdade, não há chapéu que
renda na cintura). Pois estava eu nestes preparos e encandeada de quase tudo branco
que os óculos de sol também em casa (cabeça, cabeça, o Variações tinha razão),
dizia eu que me entretinha a esquartejar, braço a braço, uma beldroega do tamanho de um naperon, a faca
uma lástima no corte, quando oiço uma voz mesmo ao meu ladinho,
- tem lume?
Palavra
que nem liguei. Sou um bocado dada a falar sozinha e inventar coisas; por vezes
oiço passos e não vem ninguém; sinto os assentos das cadeiras a ir abaixo por
desporto; e outras bagatelas que não são portas a ranger nem móveis a resmalhar.
E, convenhamos, ninguém vem para o cemitério pedir lume, há muito lugar para
isso neste mundo de Deus. Portanto, dei pressa ao sadismo sobre a beldroega advertindo-me
em pensamento, estás a alucinar, tu tem cuidado com o sol que te faz mal à
moleirinha. A congratular-me, vá lá que a linfa é pouco vistosa. Mas a voz repetiu,
-
tem lume?
E
havia uma sombra na pedra. Alto lá que isto é a sério, pensei, a beldroega
presa por um braço que nem garota mal comportada, o redondo do naperon de antes
num breve triângulo de queijo que sou
desalmada a tripudiar intentos da natureza. Investiguei de cabeça ao alto e a
voz tornou,
-
só pedi lume, não precisa apontar-me a faca.
Gosto de ciprestes. As pessoas associam-nos de forma um tanto negativa aos cemitérios mas isso não me incomoda nada. Também não me afligem os cemitérios. E convém não nos esquecermos do lume, nem das velas... :)
ResponderEliminarNão entendi a última frase, mas obrigada pela visitinha:).
ResponderEliminarNão tem qualquer subentendido. É só mesmo porque costumo acender uma vela nas campas que visito. E supus que quem pedia lume o fazia com essa intenção.:)
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