Provavelmente
não há o Deus que imaginamos a pôr alguma ordem no mundo. Um ser exterior que nos
organize a vida e que, se bem pensarmos, se pauta pela paciência nas relações parentais, crianças asneirentas que somos.
Apesar do atestado de menoridade que passamos à espécie, e
ainda que Ele não exista, há-de haver um acaso inteligente – mesmo muito
inteligente e até poderoso, que criou onde a mente humana soçobra.
Ora,
num desses acasos do destino, não dos mais inteligentes – foi mais um acaso
amoroso –, uma das primas recém-casadas veio a nossa casa passear a felicidade.
E nós a olhá-la em meia desconfiança, à procura da garota que nos gastava mãos cheias de açúcar a queimar sem sabedoria o melado dos pudins. Mal ele começava a
granular, o açúcar está estragado, vai lá
deitar fora, pomos outro. Prática, deitava novo açúcar na caçarola e logo
que começava a granular, oh, este também
está, deita fora. E gastaria quilos se nós os tivéssemos, ignorante de que
o granulado de açúcar é o passo anterior ao formar do caramelo. Confesso que, nesse
dia de visita, a olhava também a procurar sinais de casamento que não sabia
quais fossem, sobretudo porque ela me pareceu a mesma loirinha bem-disposta e cheia
de ideias malucas. Por outro lado, havia alguém que nos atraía mais: o marido. Mas
também nele só encontrámos um rapaz alegre de melena comprida em ar de rock. Quando saíram, ficámos a olhar uns
para os outros e eu, que te pareceram?
A minha irmã, não parecem casados, pois
não? Eu, pois é, parecem dois miúdos.
Posto
que o casamento não se lhes notasse, o nosso jovem primo interessou-se pelo que
fazíamos, como passávamos o tempo – lisboeta a preceito, devia estar contente
por ter descido, sem querer, à pré história; e tudo inquiria -. E foi assim que
contámos a nossa desgraça de nem rádio. E ele, eu arranjo rádios. Vão lá buscá-lo. Mas nós estarrecidos de
esperança, abalholhados e a sorrir, de certeza um pensamento comum, "tu eras a
única pessoa que a gente queria". A voz dele a sacudir-nos, vão lá, que quero vê-lo. E logo
alguém subiu ao sótão e o trouxe. Uma lástima empoeirada e cheia de cocó de
pássaro. Ele olhou e, que se ouvisse,
não formulou juízos de valor. Quis limpar-lhe o pó, mas afastou-me a empurrar o
aparelho para dentro de um saco plástico, desimportado de pormenores, deixa estar que eu limpo-o lá em casa. Vou ver o que posso fazer. E
partiram os dois. Nós todos a acenar ao casamento de brincar e a desejar que o
novo primo se lembrasse de rejuvenescer o rádio.
Passaram
os meses e nada de rádio. Quando víamos o primo ele batia na testa com força e,
ahnnn….bolas! Esqueci-me outra vez do
rádio. Não entendíamos se tinha esquecido de o arranjar ou de o trazer. Vieram frios e calores, primaveras incipientes e bulbosas, outonos pelo chão a restolhar. Nasceu-lhes um filho. E comecei a preocupar na ideia de que o rádio do
meu avô tivesse ido morrer tão longe. Já o preferia para ninho de pássaros,
feito múmia no sótão. Parecia-me até que essa morte próxima era mais ao jeito
do meu avô. Aos serões, falava nisso e o meu pai dava-me razão, ainda que não
pelos mesmos motivos. E aproveitava para desdenhar do lisboeta e das suas capacidades
com os transístores. Eu ofendia e saia da mesa arrependida de repuxar a
conversa, mas, quando descia o degrau da cozinha pequena, ainda ouvia os
finais, és mesmo anjinha, tu, acreditas
em tudo.
Certa
noite, os quatro sozinhos, bateram à porta da frente. Só podia ser
visita. Munida de candeeiro e curiosidade, fui abrir. E a comitiva a
espreitar atrás, o meu irmão bem no fim do cacho, um medo reticente em alarme de pernas e voz, a inventar delicadezas de larápio, e se forem ladrões.
Mas, destrancado o ferrolho, só o primo. Estranhámos. Ele sorriu e entrou no carro. Retirou um embrulho, a porta do automóvel bateu enfastiada, num aborrecimento de deixa-me em paz e, num toque de sino, o rádio! E um sorriso lindo a envolver; que embelezou à expressão, o arranjo é grátis. Fomos todos, corredor fora, em procissão com vela e tudo, até à cozinha. E, quando poisou o aparelho sobre a mesa, pasmámos. Não parecia o mesmo. A bem falar, nunca o tínhamos visto assim. Estava novo. E ele a curar-nos do espanto, estava tão sujo que tive de pô-lo na lixívia, ficou quase uma semana de molho. Engoli em seco, um bocadinho envergonhada. Rodou o botão e ouviu-se uma música. Distinta. Clara. Nada de balbucios rudimentares. Aquela gente estava com a força toda. Já de saída, virou-se para nós e, pus-lhe pilhas novas. E desapareceu no escuro, os faróis a alumiar bocados de árvore, as laranjeiras enormes e sombrias, o meu irmão a impacientar-me a mão livre, vamos para dentro que estou a ver ali uma sombra a mexer e tenho medo. E, em peregrinação, regressámos à cozinha, a matar a saudade do rádio.
Mas, destrancado o ferrolho, só o primo. Estranhámos. Ele sorriu e entrou no carro. Retirou um embrulho, a porta do automóvel bateu enfastiada, num aborrecimento de deixa-me em paz e, num toque de sino, o rádio! E um sorriso lindo a envolver; que embelezou à expressão, o arranjo é grátis. Fomos todos, corredor fora, em procissão com vela e tudo, até à cozinha. E, quando poisou o aparelho sobre a mesa, pasmámos. Não parecia o mesmo. A bem falar, nunca o tínhamos visto assim. Estava novo. E ele a curar-nos do espanto, estava tão sujo que tive de pô-lo na lixívia, ficou quase uma semana de molho. Engoli em seco, um bocadinho envergonhada. Rodou o botão e ouviu-se uma música. Distinta. Clara. Nada de balbucios rudimentares. Aquela gente estava com a força toda. Já de saída, virou-se para nós e, pus-lhe pilhas novas. E desapareceu no escuro, os faróis a alumiar bocados de árvore, as laranjeiras enormes e sombrias, o meu irmão a impacientar-me a mão livre, vamos para dentro que estou a ver ali uma sombra a mexer e tenho medo. E, em peregrinação, regressámos à cozinha, a matar a saudade do rádio.
No
dia seguinte, mal o liguei, percebi que não sintonizava nos mesmos
números, mas lá fomos procurando e encontrámos todos os postos excepto o Rádio
Clube, já então mudado em Rádio Comercial.
Ainda não descobri o que aconteceu à Rádio Comercial, qual o caminho que tomou, mas desapareceu de todo. Um
descaminho. De início, deduzi que o meu primo a derretera com tanta lixívia,
que seria alérgica e não se aguentou na barrela. Hoje gosto de pensar que o meu doce avô também preferia aquele posto emissor. Que arranjou modo de levá-lo e está no céu
ouvindo a Rádio Comercial. Porque, como reconhece Pessoa, as tardes da
eternidade são muito enfadonhas.
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