Lembras-te?
Foi há mais de quarenta anos e Évora parece ainda tão próxima. As muralhas, o
jardim frente à Rodoviária e onde não passeámos, as ruas de paralelos difíceis,
que tanto custavam a subir. Solitárias, íamos da antiga estação de camionagem
até à outra ponta da cidade, ajoujadas sob a mala carregada de sucata, coração num
susto de saudade. E a praça do Giraldo que não tinha fim, arcos sobre arcos,
nós a marcar paragens em solilóquio, aguento até ali sem descansar, e agora tem
de ser até ali. E os arcos inesgotáveis, em catadupa de pesadelo; nós desesperadas,
a suster a vontade de abrir a mala e atirar fora metade do conteúdo que todo
nos era necessário. Nessas noites de domingo, tardava-nos o longitudinal da rua
onde vivíamos e que, mal lhe púnhamos o pé, se mudava em desesperante elástico; até
hoje, e acredita que já andei bastante, nenhuma rua se me encompridou assim. Lá
bem ao fundo, frente ao Jardim das Canas, e junto a uma das portas da cidade, alvejava
o Convento Novo, destino de mole compacta e bruta, cortada pelo grotesco breve
de janelas gradeadas rasando o tecto.
Por
vezes, a porteira, menina Bia de sua graça, descia à rua e ajudava a
carregar as malas escada acima até à soleira da portinha pequena, entreaberta
na enormidade da porta principal que só ressuscitava ao domingo para a missa das onze ou por
visita importante. Depois, tomava balanço e levava-as claustros fora, até à
escada para o primeiro andar, “dizem que, depois da meia-noite, a irmã morta aparece aqui no primeiro
patamar”. Não era verdade. Uma vez faltou a luz e eu
estudava ainda no nosso quartinho junto à clausura. Tinha um ponto de Psicologia e gostava – toda a gente – do Serpa Branco a quem tratávamos carinhosamente
por, “o Serpinha”. E resolvi descer a escada na hipótese de poder estudar ao
luar, no claustro. Já passava da meia-noite e não encontrei um mero suspiro,
uma luzinha a alumiar o imponente tenebroso da escadaria. Nada. Tão pouco
consegui ler à luz da lua.
Na Casa Pia éramos quatro aspirantes a
professoras. Mas foi contigo que mais sintonizei. Ainda sintonizo. Não tínhamos
história semelhante, mas éramos similares na nudez da pobreza. Quem não lhe vestiu o ser não nos entende; nem compreende a nossa estranha aliança. Toda a
gente era pobre nesse tempo? Falso. A pobreza toma-nos, não há modo
de apagá-la. É um sistema de vida, e tudo que se ganha e transforma é lenha
insuficiente para consumi-lo. Transpor uma condição social. Se acontece, fica-nos o estigma às ferroadas na alma. A condicionar
escolhas e momentos de escolher. Não. Os pobres nunca foram mais livres. Quem é
subordinado à obediência por criação pode até revoltar-se, mas continua a
obedecer. Quem sabe se não descendemos as duas desses escravos que assolaram
Portugal depois dos descobrimentos. Ou dos servos da gleba que se vendiam
adstritos à terra, propriedade de outros homens. Até o orgulho é em nós uma
revolta a desfavor.
Contudo,
hoje, nós umas matronas. Falta-nos a magreza ágil de animal alentejano comido
de gorduras, só alimentado a sonho de futuro ainda sem idade. Mas conservámos
alma e olhos de infinito. E que o tempo tarde a engolir tais
benesses! Lembro a nitidez recortada do teu perfil moreno, o jeito de levantares
a cabeça se nos olhavas; a tua boca de Amália onde um pincel de mestre se
deitou a desenhar o lábio superior, lábio inferior cheio e ligeiramente
amassado no centro; os olhos de planície entre a tristeza natural e a subtileza
irónica; o nariz grego a fazer pendant com a linha estreita do queixo; a
discrição do rabo-de-cavalo que amarravas na nuca. Quase não tenho memória do
teu cabelo solto, talvez na bênção das pastas. Seguramente, na fotografia que
me deste e guardo num álbum. Assentavam-te esbeltas blusas escuras de gola alta
e jamais te vi pintada ou enfeitada garridamente. E, sobre todas as coisas, a
tua voz. Reinando. Diurna. A arrastar-se em requebros maviosos de Alentejo
profundo.
E
podes até já nem ser esta, mas é ela que eu procuro e encontro. E é assim que
te vejo sempre e me existes. Foi contigo que estive três voadoras horas ao
fogão. A querer levar-me. Amizade. É só o que vou contar.
(continua)
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