Nas vésperas do exame, as mães entraram em acção. Primeiro retiraram pó
e desencardiram-nos armadas de um nico de sabão colado à mão direita e siamês do trapo da
esfrega. E nós paxás vaidosos, um sentimento de descabida realeza a insinuar dentro
dos alguidares de água aquecida a lume de chão, uma ou outra folha de azinho
que boiava e pescávamos de mão em concha, a entortar o trabalho. E logo as mães perdiam a
sequência da limpeza e impacientavam na falta de ângulo, está quieto ou ainda te chego a roupa ao pêlo; o que era
descaso da boca, que nós como Deus veio ao mundo, a pele desencasquiada e a avermelhar numa nuvem de fumo. E elas guerreiras
e surdas a queixas.
A manhã seguinte apanhou-nos de pequeno almoço tomado em solavancos de
nervos e roupa de festa, patente registada de pobreza esgarçante. As
garotas passeavam o mato dos cabelos sem corte ou carregavam a amarra de linhas
nas tranças repuxadas, ignorando o despropósito entre a saia e o corpo dos
vestidos, um alarde nos vincos de bainha deitada abaixo. Os soquetes
envergonhavam de fraqueza junto à fivela dos sapatos quase todos cortados na
biqueira. O mundo dos rapazes semelhante:
inchados de novidade e brilhantina, cegavam a tudo o mais. Casacos desombrados
escorriam-lhes braços abaixo, mangas arregaçadas nos punhos; e atenção que se
virasse aos calções, reparava que, junto aos bolsos, delia um poímento de pontos
sobre pontos enquanto um remendo ou outro alastrava nos fundilhos, dedos de pés aguçando a unha na lona dos sapatos. No precoce mundo
feminino, a puberdade assomava por algumas costuras, pele aperreada e
medalhinha da virgem bem à vista, a meio do fio de oiro palpado amiúde,
na lembrança de avisos caseiros. E todos sofrendo desarranjo de vísceras,
tremedeira de mãos e pernas, e varrimentos súbitos de memória.
Porém, mau grado o suadouro insano que nos acometeu e de que Luís mofava
sem conseguir eximir-se, atravessámos o
exame sem dificuldades de monta. Os problemas de torneiras não apareceram e caprichei
na redacção sentindo algum alento no olhar das professoras presentes. No último
dia, contente de nós, a professora levou-nos ao café mais fino da vila e,
ufanos da primeira vez no lugar, estacionámos na mesa dos fundos, enquanto
ela ia “num instantinho” a casa. Sabia-nos
a delícia mastigar um bolo de arroz no café onde os nossos pais não entravam. Pardais
zelosos, depenicávamos a proliferação de migalhas pela mesa, numa algazarra onde cada
um erguia as peripécias da sua prova oral ao cume das dificuldades.
Imaginávamos inveja na curiosidade dos habitués,
quase todos do género masculino, uma senhora ou outra empoada e de
casaquinho pelas costas, boquinha em rosa vivo e cabelo de boneca. Apesar da reserva cada vez mais notória
dos empregados, antes tão camaradas, reinávamos contentes.
Findo o lanche, encetámos um jogo de palavras que só começou bem. Em
menos de um ai, já dois garotos se atiravam sobre a mesa a esmurrar-se perante a nossa surpresa aflita.
Parou tudo: os copos de cerveja
interrogavam a meio caminho, estarei sem gás; as chávenas de café num
escândalo, que é isto, burburinho assim nunca se viu; os galões das damas abespinhados
do vitupério, abanando dentro dos copos em meneios de ruptura, ponham-nos na
rua, onde é que pensam que estão. E um empregado de lacinho preto, passada ríspida
e impaciente alvura de mangas, um indicador a aguçar para a porta, já para a rua! Esperem lá fora se quiserem.
Saímos cabisbaixos, a apostrofar-nos em surdina uns aos outros, foi por
causa de ti, de mim, de mim é que não foi que nem falei, tu é que tens a culpa que só sabes é dar porrada.
No silêncio das mesas, copos e canecas retomavam vida e desempatavam serviço;
e, como se nós insectos incómodos mas já mortos, os senhores bem vestidos voltavam costas e
enfronhavam no jornal. Atravessámos a sala sem o incentivo de um soslaio.
Envergonhados e temerosos da mestra, petreficámos junto da porta. E logo a
gravidade gestual do laço preto, desandem daí, xô, xô, xô...esperem ali naquele
canto do passeio e nada de avarias.
Sem comentários:
Enviar um comentário