Aniversário
de meu pai. E ele com o pigarro antigo, economia da sua comoção, gratamente rodeado do que aprecia: mimos, conversa, atenção. À mesa, pois. Portugueses
que somos. Enternece vê-lo ainda a experimentar ser o de antes, aquele que lhe
surge em lampejos de raiva, aos gritos, a esbracejar com dinheiros e custos,
autoritário porque sim. Mas hoje, em atenção às visitas, usa o aparelho auditivo com
que não ouve na mesma. E é ouvi-lo a reclamar aos gritos – horas numa salganhada de vozes estrídulas -, eu oiço bem, só que não percebo. Dá-lhe
gosto e demora-se a contar sobre nomes e famílias que desconhecemos, gente velha quando ele novo. Chega a parecer
que a velhice nos aproxima. Ele para mim, tu deves lembrar-te. E depois caindo
em si, ah, não, nem eras nascida, eu era gaiato. O meu pai que vive entusiasmado
com o projecto de uma casa de banho reformada, toda outra de chão a tecto, para
melhor lhe servir a idade. Que a deseja pronta antes que o caçula e filho do
coração lhe apareça portas adentro para o abraço dos abraços, lugar onde emudece,
o pigarro dobrado que nem bicho de conta, desta vez não entro. E fala de sanitas,
torneiras e pulibã que a banheira vai fora, tenho pena mas é perigosa, afirma
convicto enquanto os dentes decifram o esqueleto de uma asa de frango. De
repente entusiasma com o Aquilino e nós sem entendermos o que faz numa casa de
banho toda à peça, um Aquilino vindo do nada. Do meio da poeira imaginária de azulejos
escavacados, chão aos cacos, canalizações mortas de todo e um pedreiro João,
aparece um Aquilino. E nós intrigadas,
qual Aquilino, pai?, eu a rememorar nomes e com a certeza de que os Aquilinos não
gostam da nossa terra, nunca conheci nenhum por cá. Se entrou, veio mudo e
partiu calado. Que eu mesma só conheço
um e de que gosto bastante, mas está mortíssimo; quero dizer que vive nas
folhas dos livros que escreveu, mas apenas nessas ou na mente de quem lhe quis
bem; e decerto não será ele que meu pai quer na sua casa de banho. Seria forte desaforo
a escritor que tanto prezo. E tu desculpa Aquilino, mas desde o Malhadinhas que
me tens rendida e nem por sombras te quereria misturado nestas andanças de meu
pai. Portanto, ficamos em que eu, ó pai, mas qual Aquilino?, e ele de língua
sem despacho, feita taranta, não é Aquilino, digam lá como é que se chama
aquilo de fechar os pulibãs. E alguém aventou, o acrílico?, ele, isso, isso.
É
assim meu pai, projecta, discute e não se atrapalha com termos que ignora. E
conta, conta, conta. Traz dos confins da memória mulheres que refere em
displicência, coitadita, está muito escangalhada; ou aquelas que lhe parece
terem remoçado, aos quarenta era um farrapo e agora está boa, uma mulheraça.
Sorrimos. Perfilha a máxima, gordura é formosura. E ainda lembrando certa de
pele de bebé que o deixou pasmado, não tem uma ruga e é da minha
idade; e depois conclui, mas parece que foi soprada, uma cadeira não lhe chega
para sentar. Por vezes, no afã de contar, a língua desacerta e ouço-o dizer, “ele
quando morreu foi para casa da irmã”. E salta a mais nova, quando morreu?!...só
se foi cremado e lhe levaram as cinzas...e ele dando conta, nada, foi antes de
morrer pois claro, antes de morrer é que foi para casa da irmã. E diz minha tia
do seu canto de sabedoria, “deixou tudo que tinha a uma instutoção”.
Quando se fez hora de voltar para o seu mundo e nos agradeceu, voltou-lhe o pigarro. E
nós na alegria de tê-lo, para o ano há mais, não é pai?
Sem comentários:
Enviar um comentário