terça-feira, 30 de maio de 2017

Aniversário

29 de Maio de 2017

Aniversário de meu pai. E ele com o pigarro antigo, economia da sua comoção, gratamente rodeado do que aprecia: mimos, conversa, atenção. À mesa, pois. Portugueses que somos. Enternece vê-lo ainda a experimentar ser o de antes, aquele que lhe surge em lampejos de raiva, aos gritos, a esbracejar com dinheiros e custos, autoritário porque sim. Mas hoje, em atenção às visitas, usa o aparelho auditivo com que não ouve na mesma. E é ouvi-lo a reclamar aos gritos – horas  numa salganhada de vozes estrídulas -, eu oiço bem, só que não percebo. Dá-lhe gosto e demora-se a contar sobre nomes e famílias que desconhecemos,  gente velha quando ele novo. Chega a parecer que a velhice nos aproxima. Ele para mim, tu deves lembrar-te. E depois caindo em si, ah, não, nem eras nascida, eu era gaiato. O meu pai que vive entusiasmado com o projecto de uma casa de banho reformada, toda outra de chão a tecto, para melhor lhe servir a idade. Que a deseja pronta antes que o caçula e filho do coração lhe apareça portas adentro para o abraço dos abraços, lugar onde emudece, o pigarro dobrado que nem bicho de conta, desta vez não entro. E fala de sanitas, torneiras e pulibã que a banheira vai fora, tenho pena mas é perigosa, afirma convicto enquanto os dentes decifram o esqueleto de uma asa de frango. De repente entusiasma com o Aquilino e nós sem entendermos o que faz numa casa de banho toda à peça, um Aquilino vindo do nada.  Do meio da poeira imaginária de azulejos escavacados, chão aos cacos, canalizações mortas de todo e um pedreiro João, aparece  um Aquilino. E nós intrigadas, qual Aquilino, pai?, eu a rememorar nomes e com a certeza de que os Aquilinos não gostam da nossa terra, nunca conheci nenhum por cá. Se entrou, veio mudo e partiu calado.  Que eu mesma só conheço um e de que gosto bastante, mas está mortíssimo; quero dizer que vive nas folhas dos livros que escreveu, mas apenas nessas ou na mente de quem lhe quis bem; e decerto não será ele que meu pai quer na sua casa de banho. Seria forte desaforo a escritor que tanto prezo. E tu desculpa Aquilino, mas desde o Malhadinhas que me tens rendida e nem por sombras te quereria misturado nestas andanças de meu pai. Portanto, ficamos em que eu, ó pai, mas qual Aquilino?, e ele de língua sem despacho, feita taranta, não é Aquilino, digam lá como é que se chama aquilo de fechar os pulibãs. E alguém aventou, o acrílico?, ele, isso, isso.
É assim meu pai, projecta, discute e não se atrapalha com termos que ignora. E conta, conta, conta. Traz dos confins da memória mulheres que refere em displicência, coitadita, está muito escangalhada; ou aquelas que lhe parece terem remoçado, aos quarenta era um farrapo e agora está boa, uma mulheraça. Sorrimos. Perfilha a máxima, gordura é formosura. E ainda lembrando certa de pele de bebé que o deixou pasmado, não tem uma ruga e é da minha idade; e depois conclui, mas parece que foi soprada, uma cadeira não lhe chega para sentar. Por vezes, no afã de contar, a língua desacerta e ouço-o dizer, “ele quando morreu foi para casa da irmã”. E salta a mais nova, quando morreu?!...só se foi cremado e lhe levaram as cinzas...e ele dando conta, nada, foi antes de morrer pois claro, antes de morrer é que foi para casa da irmã. E diz minha tia do seu canto de sabedoria, “deixou tudo que tinha a uma instutoção”.

Quando se fez hora de voltar para o seu mundo e nos agradeceu, voltou-lhe o pigarro. E nós na alegria de tê-lo, para o ano há mais, não é pai?

Sem comentários:

Enviar um comentário