Por vezes, o mundo parece testar-nos a paciência. Não nos oferece primazia, que essa pertence-lhe, mas
é como se ela exista em função do que decidimos. Entediados da peregrinação
diária e saturados de não encontrar
mudança na Casa do Cabeço, esmoreceu-nos o ânimo, amanhã já não
vimos por aqui. Mas eis que, chegados a esta tardia decisão, deparámos com
janelas abertas e, na rua que continuava o portão, sombreada por chapéu de
palhinha fina e de regador pendurado na mão, uma figura miúda,
encavalitada em altura de saltos. Começou a aproximar-se tic, tic, tic, e nós
junto às grades, olhos em alvo. Quando chegou perto, observei as gotas de suor que lhe nasciam sob os olhos, o rubor de quem não
tem hábito a soalheiras e torrinas, alguns fios de cabelo colados na testa.
Estes pormenores e a forma desajeitada de andar, afastaram-nos a suspeita de alma
penada ou fantasma. Na nossa frente estava uma mulher de carne e
osso. Depois de nos mirar, deu um olá sorridente, abriu o
portão e convidou-nos a entrar. Respondemos em coro um cumprimento arrastado e
átono que engoliu a primeira sílaba e soou meio lúgubre, “taaaard”, e
atravessámos o portão em vagares e lentidão de pernas, às voltas com resquícios
de medo que nos tolhiam e dobravam pela cintura a veneta curiosa. Teremos sido
os primeiros a pisar o chão de “As Três Marias”, nome a que ninguém fazia caso, o edifício foi sempre a
Casa do Cabeço.
Ladeámos a casa com ela a comandar a tropa e, depois de poisar chapéu
e regador, deixou-nos sob a frescura de uma árvore farfalhuda e entrou pelas traseiras dizendo, está ainda muito calor, vou
fazer um refresco para todos. Empolgámos. Em nossa casas, refresco era uma
mistura de vinagre, açúcar e água e só em dias especiais, as mães quase a suplicar, tu vê lá o que é que fazes, não me gastes o açúcar ou bebemos café amargo toda a semana. Mas ali, sobre a mesa, um jarro
grande e transparente, cheio de líquido vermelho com pedrinhas de gelo a boiar
contentamentos. Arregalámos os olhos e as bocas distenderam cheias de dentes, enquanto
ela trazia copos numa bandeja. E até à noitinha foi a conversa de quem era
quem, em que ano estava cada um, onde se faziam compras, quem vendia o quê. Queria saber tudo. E porque ninguém se importava demais connosco,
lançámo-nos a fazer pára-quedas de tal importância e, em algazarra, colaborámos quanto pudemos. Depois, a senhora olhou um minúsculo relógio
de pulso, reconheceu que se fazia tarde e trouxe-nos até ao portão. Deu um adeus apressado, correu fechos e sumiu
no caminho. E nós a rebentar de vaidade,
tínhamos sido os primeiros a entrar na
Casa do Cabeço. Quando virámos costas e nos pusemos a caminho,
palrámos animados da sorte, orgulhosos por participarmos nas descobertas sobre
a casa que movia toda a aldeia. Além disso, surpresa boa, tínhamos provado refresco
de morango. E só em casa, quando
contava a minha mãe, reparei, nada sabíamos daquela mulher. E não houvera
um convite para voltarmos. Quem era, como se chamava, que família tinha, ignorávamos.
Na tarde seguinte, antes do giro habitual, discutimos o assunto entre todos
e acordámos que já era velha.
Contudo, a discordância sobre a idade foi tão notável que suspendemos a ideia.
Se para uns ombreava com os irmãos, para outros rondava os avós. Apurámos
que seria casada ou viúva, um garoto a afiançar com juras de morra aqui ceguinho
que usava duas alianças.
Entretanto, fizemos algumas tentativas infrutíferas na casa. Atardávamo-nos ao portão a espreitar às
grades e dávamos palmadas na chapa na ânsia de mais descobrirmos, de outro
refresco, de um átomo de novidade. Mas tudo permanecia na mudez de antes,
sem bulir. Depois, parávamos o chinfrim e recolhíamos em silêncio prolongado, a
esforçar-nos por aperceber barulhos de gente, quem sabe a senhora não nos
queria ver, mas estava em casa. Enquanto estávamos suspensos, captávamos um
leve de brisa que brincava na copa das árvores e uma folha ou outra, como se envolta
em algodão, a pousar na terra. Sobrava ainda o resmalhar inquieto da passarada que nos
detectava em trinado curto, a avisar,
tem gente, e que alteava a mudar de ramo.
E a madeira das árvores estalava descomposta
de calor, elas numa timidez graciosa, desculpem. Logo atrás de nós, a
pressa pisada dos pastos dizia de um coelho desavisado, vítima do nosso
silêncio e que fugia com quantas pernas tinha. E mais nada.
E a vida continuou o seu jogo de acaso e calor. Com o passar dos dias, o nosso encontro com a Casa e a sua moradora arrefeceu e deveio memória, coisa que nas crianças, sempre cheias de presente, tem curta lembrança. Certa manhã, estranhei acordar com batidas na porta. Em minha casa, se a porta fechada, toda a gente sabia, empurrava-se o postigo, deitava-se a mão por dentro e corria-se o fecho. Ensonada e um tanto curiosa, saltei da cama e fui abrir. Pelas frestas dos olhos, recortado na claridade, um vulto de mulher, a tua mãe está? Recuei para a penumbra a refazer a marcha dos olhos num esforço de focagem e fiquei boquiaberta: na minha frente, muito composta, a senhora da Casa do Cabeço a reafirmar, preciso falar com a tua mãe, diz-lhe que vá, logo à tarde, a minha casa. E virou costas a escolher caminho na ladeira, um automóvel paciente na beira de estrada.
E a vida continuou o seu jogo de acaso e calor. Com o passar dos dias, o nosso encontro com a Casa e a sua moradora arrefeceu e deveio memória, coisa que nas crianças, sempre cheias de presente, tem curta lembrança. Certa manhã, estranhei acordar com batidas na porta. Em minha casa, se a porta fechada, toda a gente sabia, empurrava-se o postigo, deitava-se a mão por dentro e corria-se o fecho. Ensonada e um tanto curiosa, saltei da cama e fui abrir. Pelas frestas dos olhos, recortado na claridade, um vulto de mulher, a tua mãe está? Recuei para a penumbra a refazer a marcha dos olhos num esforço de focagem e fiquei boquiaberta: na minha frente, muito composta, a senhora da Casa do Cabeço a reafirmar, preciso falar com a tua mãe, diz-lhe que vá, logo à tarde, a minha casa. E virou costas a escolher caminho na ladeira, um automóvel paciente na beira de estrada.
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