Quando a vida retomou o seu curso, minha mãe trouxe o resto dos livros da filha
de madrinha Carmelita e, em nossa casa, improvisámos uma estante com tijolos e
tábuas. Depois de uma limpeza sumária na
casa da velha, fechou-a a prometer, um dia vimos as duas e dás-me uma ajuda,
temos muito que atirar fora. Foi nesse tempo que comecei a considerar a solidão
materna. Com meu pai ausente, e sem madrinha Carmelita, só eu restava. Pensei que talvez
fosse por isso que começou, aos fins de semana, a limpar a mercearia do Telha e alinhou na loucura que assolava a aldeia, que seroava diária, abrindo e descascando
pinhas e pinhões, primeiro um fogacho de faúlhas que iam quase de um monte a
outro e as pinhas a estalar ao desafio, depois um batuque infernal de cunha e martelo que repercutia e fazia
saltar os pinhões do interior das pinhas que o fogo não arreganhara totalmente, e a que não
conhecia fim por adormecer a ouvi-lo. Semanalmente, a camioneta passava a
receber, pesar e pagar o pinhão descascado e deixava novo carrego de pinhas.
Numa noite de cansaço árido, enquanto meia deslembrada dormitava no banquinho
baixo, arrisquei, mãe, eu vou para a costura? E a sua voz retesada, só se eu
morrer. E eu, então fico em casa?, ela, assertiva, nem pensar, filha; tu vais
estudar. Incrédula, revendo as palavras
de Lídia, abracei-a, mas a gente não tem dinheiro. Assentiu, é verdade, mas tu vais estudar. Num
repente, os sacos de pinhas pesavam-me; inquiri, mãe, as pinhas dão para pagar
os estudos?, e ela a mirar o encardido nos dedos castanhos e resinosos, não
filha, a gente farta-se de trabalhar, mas eles pagam uma miséria. Para poderes
estudar precisas de outras coisas, livros, roupa...vamos dormir que hoje não
faço serão, estou muito cansada.
E como é bom dormir dentro de um sonho, esperar em algo que se deseja. Foi
assim que adormeci, um mundo de esperança a cavalgar o cansaço materno entranhado em castanha poeira. Contudo, quando Setembro entrou, e apesar da veemência inscrita
nas promessas de minha mãe, assumi que Lídia tinha razão e desliguei da ideia
de estudos impossíveis. Foi então que a Casa do Cabeço foi arrendada, soava na
aldeia que a uma senhora muito fina. E
todas as atenções confluíram.
O edifício era um solar campestre e isolado, propriedade de gente que
ignorávamos. Havia nele um quê de aristocracia subtil, uma poalha de fidalguia
natural e sem alarde. Talvez viesse da sua dinâmica térrea. Ou da alva simplicidade
de paredes rectas e janelas altas. Ou do beirado angelical a cingir telhado,
janelas e portas. E também do caminho comprido, guardado por uma altura de árvores copadas, que terminava no varandim térreo e florido que corria a casa a todo o
comprimento. Sempre a encontrámos despovoada e, apesar da presteza de
desconhecidas equipas de limpeza a mantê-la intacta e inconscientes agitadoras do
diz-que-diz, jamais alguém se propusera habitá-la. Na aldeia, corriam várias
versões: que o actual proprietário era rico ao desbarato e a construção dava
cumprimento a uma aposta; que a renda era muito cara e não havia locatários a chegarem-se à frente; que era
poiso de almas penadas, os pastores que dormiam nos campos garantiam a pés juntos ter
visto janelas abertas e com luz; que
o proprietário se tinha suicidado lá dentro e fora encontrado em decomposição o
que dava mau agouro à casa, Deus nos livre de morar em sítio que acolhe uma desgraça
destas, meus ricos filhos; e havia até quem garantisse que um lobo solitário a
rondava e, em noites de lua cheia, se
chegava ao portão e por lá se quedava em uivos lamentosos de partir a alma, que
aquilo só podia ser homem em corpo de bicho, quem sabe se do tempo de reis e
rainhas, quando desta casa não havia sinal e o lugar pertencia a outras gentes.
Munidos destes saberes, meio argutos meio temerosos, saíamos à aventura pela tardinha e rondávamos,
também nós, a moradia. Chegávamos
cansados da subida, comichosos dos pastos que infiltravam nas sandálias e
alpercatas, sedentos. Pelo caminho
entretinhamo-nos a desfiar os medos inventados no emaranhado de conversas que
escutáramos, schiu, parece que vi o lobo escondido naquelas silvas; caluda
que ouvi passos e se calhar é o fantasma do morto; olhem, parece que a janela
do meio está um bocadinho aberta. Mas os passeios na zona do solar pouco
adiantavam. Espreitávamos do portão e nada.
Janelas e portas visíveis continuavam inertes.
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