A
frequência e novidade da escola nublou-me os amigos de tanta hora. Vivia em adaptação
sistémica, cercada de horários e desábito, e assoberbava de livros e matérias escolares. Inda o sol criança e já D. Amélia
encarrapitava nos saltos altos e, toda pastas e dossiers no banco traseiro, me abria
a porta lateral do automóvel. Vaidosa da boleia, sentava-me a aspirar os eflúvios perfumados que desprendia, sempre cuidando que os meus pés em
eterno veraneio - sapatos de verão eram mais baratos que botas de inverno - não
sujassem de pó o automóvel, avisos maternos às marteladas na minha atenção,
vê lá onde pões os pés, não sujes o tapete. Seguíamos em silêncio. Eu, desinteressada
de toda a ciência exacta, a desenvolver composições mentais ou rememorar verbos e regras de sintaxe e morfologia; ela, compenetrada, olhando em frente. Duas ruas antes do
colégio, num lugar de muros bisbilhotados por copas de árvore, o carro imobilizava. Depois do obrigada da praxe, apressava-me a sair. Puxava o atilho do
portão de zinco ondulado e, mal o empurrava, o carro desaparecia. Mala ao ombro, solas ecoando no deserto do quintal, abria uma porta de postigo vidrado e dava de caras com o ar morno da cozinha, um aroma de leite com chocolate a insinuar. A empregadita assomada
à porta dos quartos espreitava-me do alto do avental e apontava Madalena num sorriso
de troça habituada e dedo estendido. Sob o enleio de espargo que dava volta à
cozinha, a minha nova amiga emoldurava
em begónias. Sentada à mesa, moía a má vontade dos maxilares no pão que eu
avaliava de apetite e que ela, em aperreio de dedos fatigados, depositava mordiscado
em meias luas no pratinho pequeno, um nico de queijo a descair. E a mãe a olhar-me como se eu
uma autoridade na matéria e não da mesma idade, já viste que esta menina não
come como deve ser – e depois virando-se, bebe ao menos o leite, filha. E enquanto lhe vestia a bata, eu, sem hábito
de interruptores e candeeiros eléctricos, corria às cegas o escuro do corredor, embrenhava no cheiro a cama e suor e adivinhava o trinco.
Cá fora, respirava fundo e relanceava a cega sentada no banquinho de
parede, a bengala à mão direita, siamesa das pernas a florir, Bom Dia! E ela a compor a pose, sorriso debruçado, a visão na ponta dos
dedos que emparelhavam chinelos com pés. Depois endireitava-se a confirmar a
tira da caixa das esmolas. Maravilhada, seguia-lhe a ternura táctil e comovente
das falanges adesivadas à ranhura, como que a festejá-la. Em seguida, agitava a
caixa vazia e pestanejando à velocidade dos cegos, ainda não
passou ninguém, és a primeira; olá, já
sabia que vinhas, conheço-te os passos ainda dentro de casa. E a passar-me uma mão amiga no cabelo que seguia leve no deslavado da bata, estás bonita.
Ríamos. E até Madalena aparecer,
contávamos notícias uma à outra. Havendo tempo, falava-lhe da viagem de carro, da tristeza de burros e cavalos trotando a estalo de chicote, dos ciclistas esforçados
que impavam nas subidas, das camionetas ajoujadas de toros e cortiça, o
excesso de carga em perigo danger e que entortava nas curvas; e a mestria de D.
Amélia a ultrapassá-las. Ela ensinava-me
os cheiros e ruídos que lhe acompanhavam as horas, dizia-me que não existe apenas o
cheiro de cada um; e pestanejava a garantir que os cheiros de lugares, trabalhos e tarefas é pegadiço, se mistura na pele e nas roupas, nos delacta. E
eu em admiração ao poder do olfacto e do que ela sabia das pessoas só de ouvido nariz e pele. Mas o seu tema era a
figura de D. Amélia: o que vestia, a que cheirava, como se penteava e pintava,
os seus humores...Enfim, Madalena surgia seguida da empregada que sobraçava os
livros apertando sobre eles o elástico da capa de pele. Depois passava-os a compor-lhe as tranças, dávamos um até
logo às duas e algaraviávamos rumo à escola.
No
agrado deste quotidiano, breve se fez Dezembro. Ruas de pó varridas de vento, os
olhos vagos das crianças acompanhando um arbusto receptáculo de lixo, às cabeçadas
aqui e ali, rebolando até uma esquina onde pausava momentâneo para continuar viagem
em voo baixo, rente ao chão. A garotagem, leve de roupas e agasalho, arrepiava
no rijo da nortada. Em todas as casas se
queimava o que havia e à boca da noite as ruas cheiravam a lume e, com
ou sem chaminé, o fumo escapava-se dos telhados de telha vã. Depois da escola, a criançada catava os pinhais e trazia tudo que encontrava, sacos de caruma,
pinhas esquecidas e doentes, pequenos galhos caídos enfeixados e
carregados à cabeça, uma mão a amparar o feixe, a outra arrastando o saco de caruma. De regresso a casa, via-os pelo vidro. Peregrinavam
na beira da via férrea, cabeças a oscilar de esforço, os irmãos mais novos correndo
atrás ou na frente. E tudo me parecia longe e diverso. Uma tarde, por entre a
fila de garotos, vi Lídia. Disse-lhe um adeus efusivo mas, lançando mãos
à cabeça a equilibrar a carga, virou-me a cara. Por certo invejava o meu
conforto automóvel. Que tonta. Em Luís, antes meu vizinho de todas as horas e que agora nunca via, deixei de pensar.
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