Tenho
um relógio antigo, de tic-tac esfolado e teimoso. Cumpre os imutáveis círculos da vida em cabo
verdiano e, sempre atado às minhas
andanças, dá voltas que não acabam. Num ritual de manhãs, acerto-o e alimento-o
de corda, mãe a compor a roupa ao filho depois do desjejum, limpar boca, lavar
mãos, sacudir migalhas. E, no imediato de dormir, deito-lhe olhos de confiança.
E ele que sim, que durma descansada, a
patilha de despertar está de serviço. Adormeço. E vela-me em passo certo. Inalterado.
Se
acordo antes da hora porque um bêbado mais espalhafatoso, um grupo desvairado a
asnear, ou só uma sede, uma angústia que atravessou o mar e me agarrou num
sonho, sorri-me da mesinha de cabeceira, diz-me no azulão já manchado de sol e
longa história de arestas, descansa, está tudo bem. Mas levanto-me e espreito a
sala. As crianças dormem em abandono, num enleio de pés e mãos, o edredon a
descair do sofá feito cama. Tapo-os. A
uma ponta, a minha menina ocupa pouco espaço e tem o elástico a soltar-se da
pasta de cabelo; eles, ao contrário, apropriaram-se e dormem quase
crucificados. Atravessa-me o pensamento, preciso mudar de casa, dar um canto à
filha e aos rapazes. Antes que os impossíveis me caiam em cima deito-me de
novo, a compreensão do relógio a sorrir do mostrador, tic-tac, tic-tac,
tic-tac. Bem sei que é mecanismo metálico ou, quem sabe, plástico, umas
rodinhas que engrenam a intervalos certos e fazem mexer os ponteiros. Mas é que
o tic-tac me traz o pé descalço das mulheres de Cabo Verde. Vejo-as na praia, o
peixe ainda a contorcer-se na canastra em agonias de falta de ar, brisa
colante na capulana garrida atada em nó de engenho e erotismo salutar. E elas chamando
freguesia, filas de dentes sem dentista, a desmarcar. E deixo-me ir na sua voz
cantada sobraçando marejos de oceano, mistura de dialecto e português, um
ensaio de inglês aqui e ali. Que os mares têm todos voz diversa, mas foi na
linguagem deste que aprendi ondas e marés.
Acordo
num pulo estridente, são as cinco. Noite escura. Atardo as crianças quanto
posso. E nasce a roda viva de rabugem, pequeno almoço, vestir, pentear, aviar
lancheiras, aprestar mochilas, arrumar o que possa. Levá-los à vizinha que mos
põe na escola. Depois é a fila na paragem, um monte de gente estropiada de
sono, olhos inchados, cabeça a ganhar ideias e a caber no dia que começa, hoje
que dia é, que recados não posso adiar. Já sentada no autocarro, sou duas. A
primeira de mim pensa ainda nos filhos, relembra deveres e esquecimentos, rememora a
casa que ficou, fogão apagado, camas feitas, pão na mesa. Depois, a segunda entra na casa de D. Natália e pensa no jantar do dia anterior, no
volume de loiça, nas mercearias que faltam, nos meninos que dormem. Entro mãe e
saio empregada. Dou bons dias ao motorista ainda com olhos meigos, a
despedir-me dos meus meninos que deixei na vizinha; e saio direita e átona, toda
cheia de quem vou ser, a empregada de D. Natália. Boa senhora, ela. Parece que
escreve e escrever lhe dá sustento. D. Natália vive num mundo de faz de conta e
não sabe. Já nasceu ali, naquele mundo almofadado, silencioso, onde às vezes
estalam discussões violentas que bem ouvi os gritos antes da separação. Há alturas
em que somos todos iguais e quem vive na casa dos outros assiste-lhes o filme
da vida. Nesta casa, sou as preguetas que mantêm as almofadas de D. Natália. Faço girar o mundo quotidiano,
varro-lhes o caminho, afasto ramos caídos, colho flores e enfeito as jarras.
Sou paga para isso. Existo por via da função. Não sabem
onde vivo ou com quem, se tenho filhos, mãe, marido. Ninguém se interessa pelos
meus domingos e dias santos; ninguém pergunta quando faço anos; a tristeza é
mal vista e pertence a tempo só meu. A alegria, ao contrário, é bem vinda. Sou alegre para eles, alegre de olhos e boca. Sempre
alegre e pronta para o trabalho. Preferem-me, se cumpro de boa cara. E preciso de cumprir. São assim as Deolindas do mundo.
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