Hannah
Arendt é uma figura ímpar do século XX, um ser humano raro. Porquê? Porque sim.
E sim é ter lido três dos seus livros, a saborear-lhe o entendimento de todas
as coisas e das pessoas. Verdade, a inteligência tem paladar. Pouco sei da sua
vida, por não ter hábito de ler contracapas. Quando vi o anúncio de um filme biográfico
sobre esta mulher que admiro, marquei-lhe data – a próxima que me deslocasse a
Lisboa. E foi hoje.
Animada por tal brisa, entrei num
centro comercial à hora de almoço e o enjoativo de fritos invadiu-me por
inteiro. No completo de mim. Era uma misturada de fast food que se debatia no ar, sou
eu que pairo, sou eu, sou eu. E logo um outro a sobrepor, não, não, eu sou mais forte, tenho caril,
cebola…E um terceiro a empurrar os dois, nem pensar este é o meu reino. Fora! E idem, idem. A agoniar-me.
Mas as gentes sentadas no barulho, olfacto habituado a lutas aéreas, mastigando.
Ou só olhos mortiços, em observação de movimentos e passagens. A ilusão de viver
que emprestam a pressa e a vida dos outros! Não será bem assim. É mais uma
saudade que os encontra sem densidade e irrompe por eles dentro se um parzinho
de mão dada a conversar entendimentos; ou se cruzam olhos inquietos, que
esquadrinham o espaço até ao alisar descontraído
e expressivo. Encontrou. E, nos seus olhos de presente inábil, passa uma espécie
de inveja do futuro que já não sentem e existe – pensam - em quem transita. Que só o entendimento procria futuros.
A
essa hora, perfumadas e blazées, as mulheres
enxameavam. Mas a omnipotência do
cheiro. Armado de rudeza, engolia sem complacências odores fortes de Chanel e
Givanchy, a ofendê-los no âmago, que
mixórdia é esta? Retirem-me da cloaca, por favor. E as águas de colónia a
desfalecer fraquezas, desisto.
Perseverante
e razoavelmente agoniada – tenho quase sempre que peregrinar para obter - aguentei uma fila comprida a lagartar por
entre a rixa de odores que nessa altura já me pareciam a ranço. Cansada e
contente. Futurava estar bem sentada duas horas, imersa num assunto de filme. Bem-disposta.
A descansar de ser mim. O cinema obriga a pausar o quotidiano; ser ninguém, esquecendo que somos alguém. Ali, somos filme.
Desilusão. O filme não tem chama. Ou não me chamou. Cinge-se à posição humanista de Hannah
Arendt no julgamento de um nazi e às consequências drásticas dessa posição,
defendida num jornal americano. Hannah incompatibilizou-se com as chefias do
movimento sionista por lhes apontar culpa na defesa dos judeus deportados para os campos de
concentração. E a sua maior coragem foi sacudir as consciências desde o
interior e apontar o réu como uma despersonalidade, alguém que perdeu a
capacidade de pensar, delegada num führer. Mas todos esperavam uma violenta
condenação - ela mesma fugira de um desses campos -, os adjectivos em catadupa, pedradas de enterro fundo. “Hannah Arendt” é um filme
sobre o perigo de tocar a verdade com as mãos. E do quanto os outros não nos
gostam por nós mesmos, mas por julgarem que comungamos dos seus ideais e preconceitos. A luta contra a subjectividade da opinião. E a
vitória do pensamento crítico. Filosófico.
No
entanto, e apesar da fita tentar apresentar uma Hannah Arendt muito humana, ela falta. Há ali uma inveterada fumadora, a pensadora, a mulher
dedicada aos amigos mais antigos, a excelente professora. O trabalho da actriz
é notável na oralidade conseguida. Mas a Hannah Arendt dos livros que li,
apesar de algumas frases e conversas textuais, não apareceu. Em compensação, Mary,
a amiga, é bem mais avassaladora e empática. Há no filme uma racionalização das
relações amorosas que não esbate nos beijos trocados. E o encontro com Heidegger
não pode ter sido aquele amor quase nada, que ali é
apenas aflorado e semelha mais uma paixão de velho a que a aluna corresponde com
admiração e complacência. E que joga mal
com a afirmação de que o seu inexplicável foi Heidegger.
De
todo o filme, gostei de uma frase que me faz sorrir, por ser a que menos tem a
ver com Hannah. Depois da doença, dão uma festa em casa que reúne de novo os
amigos dos serões antigos. Para comemorar. E quando saiu toda a gente Heinrich
diz algo semelhante a, “como me cansou comemorar a minha saúde!”.
Num
filme filosófico, não me parece bem lembrar-me só desta
frase. Reconhecer-lhe razão, em identidade subjectiva. No finalmente das festas, sou
ele. O que seja que se comemore.
Está
decidido, vou ler mais uns livritos de Hannah Arendt. Mais vale.
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