Os
povos são todos diferentes, dizemos. Mas as pessoas tão iguais! A situação
económica e a pertença de classe aproximam continentes distantes e emparelham
comportamentos. Quando estive no Brasil, viajei de táxi - bem lentamente - entre
o hotel e o aeroporto, os olhos a despedirem-se em tempo útil. E senti-me
replantada na minha aldeia. O Táxi passava devagar pelos lugares e a mesma caterva
de sombras e pobreza nos adereços, nas casas, nas pessoas. Escurecia. As portas
escancaradas à brisa. No interior, os candeeiros de petróleo a bruxulear claridades,
enxameados de insectos que circundavam a morte em sua dança cega; mulheres descalças
ou a chinelar, entrevistas em lida caseira, sem a graça que as revistas e as
actrizes emprestam ao feminino brasileiro, morenas, gordas, pesadas; talvez suadas.
As tabernas vozeavam e o suor brilhante do álcool já acetinava braços, rostos graníticos
riscados de vincos fundos, troncos meio dobrados para a frente, talvez sobre um
copo, ou apenas sobre si mesmos, em fase introspectiva de bebedeira; Como num
quadro, as pernas penumbravam informes mas, grande parte dos olhos encimava
camisolas de alças, um viés para o canto onde uma televisão junto ao tecto. E,
na maioria das aldeias, havia talvez um café, onde mulheres e crianças hipnotizavam, ordeiras, em bancos corridos a toda a largura da sala, a televisão
ligada à bateria de um automóvel ou a um gerador que resfolegava canseiras no bafo
escuro da noite. Podia ser a minha aldeia no quando dos inícios da TV. Que a
minha mãe nunca viu e pouco me autorizou a participar. Daí que, lá em casa,
nada destronasse o rádio.
Aos
dezassete anos, fui estudar para a cidade, só regressada à quinzena. As viagens
eram caras e o meu pai ditou lei. Por contingências alheias à vontade do clã, o
meu avô, que começara por ficar com o meu primo em nossa casa, passou a andar
em casa dos filhos. Mais tarde, adoeci e a determinada altura o médico internou-me. Felizmente alguém atendeu o meu pedido de transferência para um lugar onde pudesse estender a mão e tocar alguma visita que me chegasse, assistir o sol a nascer, usar a minha roupa, os meus sapatos, andar, correr, ver gente. Portanto, mudei de hospital. Na madrugada da
mudança, o meu pai chegou preocupado e insone, um saco colado à mão que só me passou na despedida, a voz a falhar-lhe, Toma, mandou o avô. Deu-me um beijo rápido e partiu em pressas embaraçadas de preocupação mal embrulhada na ternura triste que não sabia nem ousava mostrar mas sei que houve. A
situação era tão nova que não abri o saco e fiquei embasbacada à porta, alguém
a levar-me as malas, as costas do meu pai na ambulância a sumir além-portão.
Quando, já noitinha, olhei o saco, o rádio refulgia lá dentro. Exultei e
dei-lhe o uso que merecia.
Levei
meses para regressar a casa. E quando cheguei e o meu avô uma visita, logo lhe
ralhei. Ele, “tu gostas muito de ouvir
música, o avô quer que fiques com ele e o leves lá para onde vais; é um gosto
meu, neta. Já me tiraram tudo, só tenho a telefonia. É tua, minha neta”. E
como era jovem e pateta, desatei a chorar e abracei-o, gosto muito de si, gosto muito de si, avô gosto tanto de si. E
depois, avô e agora o que põe em cima da
mesa-de-cabeceira? E ele, o teu
retrato. - e num sorriso - Anda
comigo na casa dos filhos. Vai lá ver. E lá estávamos os dois sobre a mesa-de-cabeceira
eu de lenço na cabeça feita cigana e o meu avô de barrete de orelhas, cajado na
mão, sentadinho na sua cadeira. Não me lembro do fotógrafo. Mais tarde, quando
já não servia ninguém, os meus tios enviaram-ma ainda na moldura que lhe
oferecera. E lá estamos nós dois a sumir, quase indistinguíveis na brancura amarelada
daquela esquina de sol.
A
“telefonia do avô” acompanhou-me a vida errante de professora primária agregada
e efectiva. E todas as férias voltava à aldeia, ainda sem luz eléctrica. Nela
aprendi as poucas canções que sei cantar.
Ora,
objecto como outro qualquer, não se subtraiu às leis do tempo e foi adoecendo.
Começou a engripar, a tossir, abriu em intermitências vocais, soluçava que só
visto; e o Rádio Graça empreendeu em rugidos de leão entusiasta que não
desapareceram. Perante tanta birra, as férias eram menos alegres. E deu-nos
cabo dos rituais: pintar paredes ao som de música era outra categoria; serões
sem Telefone Toca, perdiam encanto; não conseguíamos acompanhar os jogos de
hóquei e torcer pela selecção. Estávamos pelos cabelos com tanto impedimento. Por isso, sem coragem de
a deitar fora ainda que sem préstimo, guardei-a no sótão. Sem me lembrar de a
embrulhar.
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