Há
olhos problema. Miram-nos de dentro de um intrincado que lembra um fino enredo
de fios, sem vislumbre de ponta. Foi assim que te vi nos poucos meses em que
foste meu aluno. Meu aluno! Isto sim é enredo. Eu saberia mais de alguns
assuntos, mas tanto aprendi nas aulas. Tanto. Olhava-vos e o desabafo de
Matilde Rosa Araújo para a sua primeira turma, a acotovelar-me, “e como éramos
primários e sozinhos…”. Quem sabe, todos sejamos primários e sozinhos. E tu eras
sozinho. Alto e sozinho. Sentavas-te ao fundo da sala e ninguém a teu lado.
Parecia-me então que preferisses assim, lacónico e atento. Entravas e saías sem
que se desse por ti, na algazarra da turma. Quantas vezes te olhei as costas
direitas, a cabeça que subia acima das outras… e algumas delas chamei-te. Voltavas
atrás. Falavas o essencial, mas olhavas bem dentro dos meus olhos e eu
observava o teu emaranhado de fios, tanto nó! Mas conversávamos sobre outras
coisas – eu conversava, que tu, frases curtas e monossílabos. Se te lembro,
continuas a olhar-me do fundo de um quadro de Modigliani, a floresta negra das pestanas
a debruar-te o imenso tormento verde. Um rosto trágico. Sério. Sem o ameno de
um sorriso. E eu, que não sei desfazer tragédias senão com palavras, perguntava-te
umas coisas, contava-te outras… uma estratégia palerma, mas não sabia de outra
forma para me aproximar do enleio na tua meada.
Um
dia, fizemos grupos de trabalho e deixei livre a formação. Quando anotava a constituição dos grupos, verifiquei que não pertencias. Continuavas lá ao fundo.
Sozinho. Cabeça erguida. Inquiri-te. Respondeste que tinhas tentado dois grupos
e nenhum te quis. Começou-me a subir uma raiva fininha, mas instei a turma. E
um silêncio de moscas. Renovei-me na questão. Nada. Até que uma aluna
espevitada, stôra, ninguém o quer, ele não
sabe, falta aos trabalhos, não ajuda. Coraste violentamente. Perguntei como
podiam antecipar o teu comportamento. Logo, foi
assim no trabalho anterior, na disciplina de. E o peremptório de alguns
grupos, com ele, não! Passei-me. Era
um décimo ano, a maioria alunos do colégio. As meninas a vociferar
que não te queriam, fazias-lhes baixar a classificação. Então, peguei na
religião que arvoravam a todo o momento e disse-lhes que não era cristão o que
faziam, que não compreendia a sua posição, as avaliações eram individuais e não
de grupo. E integrei-te no grupo delas, propondo-me, intimamente, acompanhar-te
mais – eras mais velho mas indiciavas atraso, confesso que supunha que a tua
idade mental seria inferior à cronológica e que um curso profissional te servia
melhor que a área de Ciências e Tecnologias, que, à época, tinha outra designação. E julguei o problema sanado.
Porém,
no dia seguinte, o teu grupo comunicou-me a sua dissolução; optavam por um
trabalho individual. E dessa vez a minha voz tremeu e devo ter-me irritado, não
autorizei trabalhos individuais e mantive o grupo. À tardinha, tinha o
encarregado de educação de uma delas em minha casa. Para, supostamente,
me dizer que a filha era católica e cumpria com os deveres da sua inatacável religião. E acrescentou displicente, num repto quase sussurrado, que eu te protegia por seres filho de quem eras. Eu. Que
ainda hoje desconheço quem sejam os teus pais. E que fui educada no mesmíssimo
colégio. Foi a primeira e última vez que um encarregado de
educação pediu contas em minha casa. O teu grupo funcionou e apoiei-te na parte
de trabalho que te coube. Fizeste uma apresentação razoável. Parecias satisfeito.
Bem
mais tarde, já quase no fim do ano, as garotas pediram desculpa. Mas,
entretanto, tu já tinhas desistido da escola, os professores aliviados. A mim,
desculpa, soou-me a traição, pareceu-me mal. Mau grado a idade adulta, a
juventude crédula remanescia-me pacífica. Podíamos mudar alguma coisa. Os dois. Senti-me
abandonada quando, sem aviso, deixaste tudo.
A
vida leva-nos onde quer e não voltámos a cruzar-nos. No entanto, soube
que casaras. Porém, mal um filho nascido, o divórcio. E pensei que o enleio
estaria ainda intacto, no teu fundo verde. Desconhecia, mas falavas em suicídio. Que agora consumaste. E lamento, lamento, lamento. Devia ter
procurado melhor, achado uma ponta que, no meu razoável de desenlear fios, quem
sabe, uma linha inteira sem um nó. Mas não desenredei nada, não andei um
centímetro. Por certo, contribuí no aperto.
Talvez
que, enfim, os teus olhos, desenleámos.
E a floresta das pestanas em repouso, sem uma sombra a afundar.
Dorme.
Dorme que o mundo te pesou sempre. E que um anjo toque de leve as ondas do teu cabelo e a paz
te acompanhe no eterno.
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