O
tempo toca-nos em modo próprio. Modifica-nos o corpo, a alma, os gostos. À medida
do desgaste, mata-nos os amigos, traz-nos rancores antes inconcebíveis,
quotidianos fastidiosos, anseios nunca imaginados. Diz o povo que ele tudo traz e tudo leva. Neste ditado, palpita
a viva fatalidade de Anaximandro “os seres pagam pena uns aos
outros..” ou mesmo as palavras de Cristo, “A quem muito foi dado, muito será
pedido”. Se pensamos nas três proposições, verificamos que não serão apenas
sintoma de humano fatalismo. O sentido de posse é-lhes extrínseco, antes prefiguram
o efémero vital que encarnamos – somos seres passantes. As virtudes de cada
homem pagam-se sabendo que uso servem e
concretizando-lhe a utilidade. Por sua vez, a religião traz o tema ao campo do
dever; exige, obriga, individualiza. Concluindo: nada nos pertence
verdadeiramente, nem nós mesmos nos pertencemos. Assim se talhou a minha base
educativa. Talvez que, nesse tempo, a da maioria dos portugueses. E, quem sabe,
dos europeus.
Mas,
enquanto a minha geração crescia com a rádio e assistia à eclosão e
açambarcamento da TV, na minha família ela senhoreava. Teria uns quatro anos quando
vi um gramofone e sua caixa de madeira. Dava-se a uma manivela e saia música.
Fascinei. Vezes infinitas, pedi ao proprietário que repetisse a proeza e
enquanto ele dava à manivela eu encarregava-me de espreitar por todos os lados
da maquineta, sem atinar com o milagre. Era um homem penteado, barba feita, para
o comum da aldeia, um senhor. Despedimo-nos com a promessa de voltar, mas,
apesar de instantes pedidos, a minha mãe não me fez caso. Anos mais tarde,
contou-me que era doente do Caramulo, tinha levado o gramofone e não voltara a
casa. Pensei que o Caramulo fosse doença grave; lembrei o senhor a dar à
manivela para mim, enquanto as mulheres à boca pequena, está tão bem encarado, mais gordo, estimadinho, olha a pele dele, nem
parece que andou ao campo. Muitos anos depois, passei ao sanatório do Caramulo
e pareceu-me ouvir o som do gramofone a sobrevoar o abandono do lugar. O senhor
deve mas é ter-se curado e continua a dar música ao fresco das serras.
No
meu período de escola primária, conhecia os rádios das duas tabernas e tomava-os como enfeites, tal a algazarra
masculina. O meu padrinho, que era homem de aproveitar tudo, a rir com seus
dentinhos de coelho – os meus professores, aquele
espaço na dentição chama-se barra ou diastema - varre lá aí a taberna ao padrinho. E deve ter rodado o botão do
rádio. Parei logo com a poeira, dei um pulo e sentei-me na mesa do chinquilho a
ouvir. Ele rápido, a salpicar gafanhotos para todo o lado com o nervoso, sai já daí, as marcas estão a giz, apagas
isso tudo aos homens. Varre mas é a casa. E rodou de novo o botão. Fiquei a
pensar que bem merecia a barra ou diastema dos coelhos.
E
um domingo em que visitámos os meus avós, surpresa! Um rádio sobre a mesa.
Cresci de alegria. O meu avô sentou-me no trôpego dos joelhos e ficou a girar
um botão que fazia um pau fininho avançar e recuar numa janelinha com números.
Quando saí, já memorizara o número de cada posto, os meus dedos pequenos sobre
os dele a rodar o botão, avô eu sei, eu
sei. E ele a rir baixo, uma poalha de ternura no ar. Diziam-me, em que posto está, e eu ia ler e depois, Rádio Clube, Emissora Nacional, Emissora Dois, Rádio Graça.
Na
minha mente, a cada um dos postos de rádio correspondia uma imagem. Assim, o
Rádio Clube era uma coisa desportiva com meninas de sainha curta e raquete ao
ombro a jogar ténis, que era um jogo que não sabia como se chamava, mas
apareciam meninas assim nas fotonovelas a fazer propaganda ao modess; e eu lia
naqueles balõezinhos com frases que elas iam ao clube com modess pétala macia,
cujo também julgava ser um homem, por sinal com nome bem estranho, mas sendo
brasileiro…porque não? E no boneco havia ainda os rapazes com camisolas brancas
de risquinha no decote. Na minha leitura, esses eram os modess. O Rádio Clube era
o meu posto preferido. Além disso, falavam do Omo que eu pensava que era uma
pessoa porque lavava mais branco. Admirava-me era que fosse homem e não mulher,
mas pronto. O mundo não pode ser todo igual. E nem eu sabia de máquinas de
lavar.
Depois,
havia a Emissora Nacional de que gostava menos, cantavam fado, ouvia-se o
presidente de vez em quando e pensava que era um palácio enfadonho e aborrecido
todo cheio de alcatifas onde as minhas pernas queriam avançar e não podiam. De
vez em quando, sonhava-me perdida no meio das alcatifas que inventava, as
pernas presas, dava um reviravolta na cama, enleava-me nos lençóis e caia
estatelada no chão.
A
emissora dois era uma entidade desconhecida cheia de músicas que não acabavam.
Ninguém cantava. E isto enchia-me de insistências e dúvidas que aborreciam toda
a gente. Foi a única rádio a que não dei imagem.
Finalmente,
o Rádio Graça, onde eu julgava que tudo era grátis e supunha ser uma espécie de
parodiantes de Lisboa, acerca de quem a minha avó, “têm graça; têm muita graça”.
Imaginava um armazém muito grande com a música em fundo e onde toda a gente bem
disposta e bem recebida, cada um a retirar o que entendesse. Mas quando pedi à
minha avó para irmos até lá, ela olhou-me como se fosse maluca e, isso não pode ser, vai para a rua brincar e
deixa-me trabalhar em paz.
A
compra do rádio guindou os meus avós à riqueza. Os meus avós. Que não sabiam
ler, pagavam o rádio a prestações e tinham uma cozinha de chão de terra. Mas que
me interessavam tais pormenores? A minha
mãe dizia-me que não comprávamos um por falta de dinheiro. E a lógica infantil
fez o seu caminho.
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