quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Para Lá do Mar

As nossas previsões mais catastróficas não ganharam o alcance daqueles quatro dias em que tudo falhou excepto nós. O frio foi bem maior do que supúnhamos, as refeições difíceis - as gentes andavam todas a comemorar a liberdade recém-nascida e não havia onde comprar -, não tínhamos qualquer prática em fogões de campismo a trabalhar dentro de tendas, fazia-nos falta uma casa de banho com chuveiro. E mais. No entanto, todos nos divertimos e guardámos como bom esse interregno. As noites tinham serões risonhos a correr devagar, cada um contando aquilo de que se lembrava. Dos dias, pouco mais lembro. Sei que não deu para um passeio à beira mar e nem experimentámos os fatos de banho.
            No último dia, levantámos tudo e quando olhei os meus irmãos mais novos para a distribuição do material a carregar, embatuquei. Não me lembrara de lhes dizer para trazerem outra muda de roupa – iam correr na praia em fato de banho de manhã à noite – e estavam tão sujos como os ciganitos que batiam na minha porta e a nossa mãe atendia desvelada. A minha irmã usava o vestidinho que chegara amarelo e quase não tinha cor depois de quatro dias no corpo, a frente asfixiada por um compacto de nódoas em camada que me intrigou, onde é que ela o tinha conseguido se quase não saíamos da tenda. Olhei os braços dos dois e eram uma mistura de escorrimentos de sumo e sujidade. Quanto a mim, apesar de a ter virado do avesso, enchera de borboto a blusa emprestada que nunca despira e suponho que devia estar esguedelhada, o que não era desábito. Cada um de nós desejava um banho, o pijama e a nossa cama com um colchão que, nessa noite, nos pareceu de penas. Não sei o que se passou com os meus irmãos que embarquei na camionagem rodoviária, mas eu e a minha amiga chegámos a casa um bocadinho descompostas e ganhámos duas nódoas negras nas ancas, que o chão não é algodão.
            Corolário da experiência, os acrescentos na nossa agenda: passou a constar vestuário para chuva, sacos-cama e mantimentos.
  Provámos ser um grupo com capacidade de singrar e gosto pela experiência; portanto, nos dias seguintes marcámos o campismo das férias grandes: quinze dias na Zambujeira do Mar. É claro que os meus amigos é que escolhiam, eu, no bê-à-bá marítimo, limitava-me a perguntar apalermada, isso é onde, perto de quê.
Na Zambujeira do Mar, para além dos meus irmãos, levei o meu primo Pedro que passava todas as férias connosco, vindo de Madrid. Todas as noites nós duas fazíamos contas aos gastos, a lista de compras para o dia seguinte e organizávamos os grupos de trabalho e compras. Em termos económicos a minha amiga pagava duas partes – a dela e a do nosso amigo ainda estudante – e eu o dobro; os meus dois irmãos mais novos valiam por uma pessoa e apenas lavavam e arrumavam a loiça do pequeno-almoço. Fizemos dois grupos de trabalho,- para o almoço e o jantar -  um comigo e outro com ela e em cada dia uma de nós ia às compras com um dos rapazes, ela com o amigo e eu com o Pedro. O grupo do almoço seguia para a praia imediatamente a seguir ao pequeno-almoço, mal arranjasse o lanche de todos - que lhe calhava carregar - voltando à tenda perto das onze; o do jantar procedia de forma idêntica. Em cada dia, um dos rapazes comprava o pão do pequeno-almoço enquanto o outro punha a mesa e aquecia o leite. Era bem agradável comer o pão morno com manteiga e pensar que tínhamos um dia todo nosso pela frente.

Não sei o que devo a esses dias livres, mas certa é a alegria se antevejo umas horas ou uns dias assim, de apetite. Entra-me um bem-estar meio estranho que torna vívida essa brevidade ainda futura onde cada minuto me vale por anos de relógio. Talvez viver seja assim, uma espera entre momentos de qualidade.

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