As
nossas previsões mais catastróficas não ganharam o alcance daqueles quatro dias
em que tudo falhou excepto nós. O frio foi bem maior do que supúnhamos, as refeições
difíceis - as gentes andavam todas a comemorar a liberdade recém-nascida e não
havia onde comprar -, não tínhamos qualquer prática em fogões de campismo a
trabalhar dentro de tendas, fazia-nos falta uma casa de banho com chuveiro. E
mais. No entanto, todos nos divertimos e guardámos como bom esse interregno. As
noites tinham serões risonhos a correr devagar, cada um contando aquilo de que
se lembrava. Dos dias, pouco mais lembro. Sei que não deu para um passeio à
beira mar e nem experimentámos os fatos de banho.
No último dia, levantámos tudo e
quando olhei os meus irmãos mais novos para a distribuição do material a
carregar, embatuquei. Não me lembrara de lhes dizer para trazerem outra muda de roupa –
iam correr na praia em fato de banho de manhã à noite – e estavam tão sujos
como os ciganitos que batiam na minha porta e a nossa mãe atendia desvelada.
A minha irmã usava o vestidinho que chegara amarelo e quase não tinha cor
depois de quatro dias no corpo, a frente asfixiada por um compacto de nódoas em
camada que me intrigou, onde é que ela o tinha conseguido se quase não
saíamos da tenda. Olhei os braços dos dois e eram uma mistura de escorrimentos
de sumo e sujidade. Quanto a mim, apesar de a ter virado do avesso, enchera de
borboto a blusa emprestada que nunca despira e suponho que devia estar esguedelhada, o que não era desábito. Cada um de nós desejava um banho, o pijama e a
nossa cama com um colchão que, nessa noite, nos pareceu de penas. Não sei o que
se passou com os meus irmãos que embarquei na camionagem rodoviária, mas eu e a minha amiga chegámos a casa um
bocadinho descompostas e ganhámos duas nódoas negras nas ancas, que o chão não
é algodão.
Corolário da experiência, os
acrescentos na nossa agenda: passou a constar vestuário para chuva, sacos-cama
e mantimentos.
Provámos ser um grupo com capacidade de
singrar e gosto pela experiência; portanto, nos dias seguintes marcámos o
campismo das férias grandes: quinze dias na Zambujeira do Mar. É claro que os
meus amigos é que escolhiam, eu, no bê-à-bá marítimo, limitava-me a perguntar
apalermada, isso é onde, perto de quê.
Na
Zambujeira do Mar, para além dos meus irmãos, levei o meu primo Pedro que
passava todas as férias connosco, vindo de Madrid. Todas as noites nós duas fazíamos
contas aos gastos, a lista de compras para o dia seguinte e organizávamos os
grupos de trabalho e compras. Em termos económicos a minha amiga pagava duas
partes – a dela e a do nosso amigo ainda estudante – e eu o dobro; os meus dois
irmãos mais novos valiam por uma pessoa e apenas lavavam e arrumavam a loiça do
pequeno-almoço. Fizemos dois grupos de trabalho,- para o almoço e o jantar - um comigo e outro com ela e em cada dia uma de
nós ia às compras com um dos rapazes, ela com o amigo e eu com o Pedro. O grupo
do almoço seguia para a praia imediatamente a seguir ao pequeno-almoço, mal
arranjasse o lanche de todos - que lhe calhava carregar - voltando à tenda perto
das onze; o do jantar procedia de forma idêntica. Em cada dia, um dos rapazes
comprava o pão do pequeno-almoço enquanto o outro punha a mesa e aquecia o
leite. Era bem agradável comer o pão morno com manteiga e pensar que tínhamos um
dia todo nosso pela frente.
Não
sei o que devo a esses dias livres, mas certa é a alegria se antevejo umas horas
ou uns dias assim, de apetite. Entra-me um bem-estar meio estranho que torna vívida
essa brevidade ainda futura onde cada minuto me vale por anos de relógio. Talvez viver
seja assim, uma espera entre momentos de qualidade.
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