O
núcleo duro de campistas manteve-se inalterável ao longo dos anos e, apesar de
alguns ameaços, nenhum de nós escolheu namorados dentro do grupo, o que foi bom.
Porém, houve algumas adições: temporárias e definitivas. Por várias razões, o
Pedro deixou de nos visitar nas férias grandes e foi substituído pela Gina
Antunes, amiga da minha irmã, que se tornou membro efectivo e passou a integrar
a minha tenda, fazer parte do meu grupo de trabalho e de espera nas estações
rodoviárias, melhorando a qualidade de tudo. Por norma, almoçávamos em Sines
onde mudávamos de autocarro. Como só havia tempo para o outro grupo almoçar,
nós comíamos as sandes que nos enviavam – um deles vinha trazê-las - misturadas com o cheiro pouco apetecível do
gasóleo e encostados à pira da bagagem. Creio que foi ali que eu e a Gina
começámos uma amizade de anos, entremeando canções, dado que tínhamos
frequentado as irmãs salesianas e, ainda que em lugares diferentes, o
reportório era, em parte, comum. Agarrámos o vício de cantar juntas e, bem mais
tarde, ainda ela me passava letras de canções que a rádio divulgava e eu
preferia, como Amazing Grace, Yesterday
e assim, que cantarolávamos em qualquer lugar. Além disso, não havia como ela
para guardar os restos do jantar. Dizia certa noite a fechar dois tuperwares com sardinhas assadas e arroz
branco, eu guardo e amanhã como ao pequeno-almoço. E ao nosso riso respondia
convicta, sim, sim, ponho leite e açúcar no arroz e faço arroz doce e podem
apetecer-me sardinhas assadas. É claro que nunca comeu o que fosse do que
guardou e que nós atirávamos fora sem mais conversa, mas a sua convicção nocturna
era supremo bem, um bombom que nos servia de bandeja. A Gina foi talvez
a nossa melhor aquisição - uma amiga que nunca esqueci. Como a nossa amizade
cresceu, deu flor e também fruto, desenfreávamos como potros cantantes em
incursões de veraneio nos barcos para Troia, encantadas da vida e com ela.
Mas
houve mais gente: alguém que convidei certa vez e apareceu mesmo. Lembro-me que
gostava imenso das nossas refeições – almoço e jantar com sopa, segundo prato e fruta - , achava
tudo uma maravilha e rematava as frases com uma invariável palavra que nunca
deixou de me ferir os tímpanos; porra. Eu perguntava, está bom, e ele
respondia, tão não tá, porra. Nesse ano, éramos nove pessoas a acampar e
ninguém teve coragem para lhe pedir que evitasse o termo, pensando – creio que
bem – que podíamos retirar-lhe a naturalidade e que talvez começasse a sentir-se
mal no meio de nós. Quando falava desse período, a mãe costumava dizer que
chegara encantado e lhe apontava olho crítico à monotonia do cardápio, elas não
repetiram uma refeição em quinze dias.
Outra
aquisição que passou a definitiva foi o Jorge. O Jorge era convidado do nosso
amigo e seu companheiro dilecto de tropa e arredores. E um menino de sua mãe. Da
primeira vez que o vimos reluzia sapatinho de verniz preto e meia branca a
fazer pendant com o alvo de uma
Lacoste. Acrescente-se que surgia bronzeado em seus ray-ban. Franzimos o sobrolho. Tinha uma mochila óptima, marca não
sei quê, enfiada num saco de protecção e sem uso, entalada entre a tenda e o
sobretecto. E preferia transportar nuns sacos compridos da tropa todos os seus
bens. O Jorge era tão diferente de nós que alguns atritos iniciais se tornaram
de obrigação, um ponto de honra. Levara tenda própria e todas as manhãs
acordávamos com ele a escovar-lhe o pó. O ruído da escova no nylon era, para os
mais dorminhocos, deveras irritante. Porém, no final da quinzena, estava adaptado e
tínhamo-lo adoptado. Atirou fora a protecção da mochila que pôs a uso directo,
comprou umas alpercatas e arrumou os sapatos de verniz que não davam jeito
nenhum quando jogávamos à apanhada no largo da igreja de Porto Covo (escorregou
algumas vezes, as solas na calçada não dão bom resultado) e guardou as peúgas brancas
dentro dos tupperwares, prova definitiva que estava pronto para continuar a acampar
connosco. Supõe-se que a mãe se tenha desgostado ao desfazer a mochila do
rebento, lamentando, quem sabe, a ciganagem com que andava metido. Bom, a senhora
devia era agradecer-nos, além de lhe termos ensinado a lavar as meiinhas
brancas no lavadouro público, o filho aprendeu, na prática, o nosso slogan para a lavagem da loiça, “o bravo
não se mete dentro de água” (o bravo, para quem não saiba, é um esfregão de lã
de aço embebido em sabão, muito útil para lavar tachos - ainda existe - e que, empapado, rapidamente deteriora).
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