Deolinda
tem horário galinácio e trabalha a poder de sol. Madrugada alta que é ainda
noite escura e já ela se levanta para entrar, discreta senhora, num autocarro que a traz até mim. Sinto-lhe os passos na pressa da casa.
Acorda os miúdos, alimenta-os, trata dos lanches, vê se nada falta nas mochilas e leva-os ao autocarro da escola. Então, a casa cai num silêncio que lembra a
noite, sem um som. Até que a porta se abre e fecha de novo. Descanso e adormeço com os sons abafados da cozinha a voltar a si. Mais tarde, ainda eu me arrasto ensonada e
já a roupa flutua no estendal a cumprimentar-me à inveja, faz tempo que cá estamos.
Atenta, Deolinda ciranda pela casa. Olha-me num sorriso de bons dias, e interna-se na
cozinha a informar bem disposta, o
pequeno almoço sai já. E mal desdobro o jornal, planta-se por cima das letras o cheiro bom
a torradas e café. Deixa-me um bandeja composta e acode ao quintal.
Perde-se ali um tempo e quando sai a compras o mundo lá de fora está amanhadinho. De enfiada, faz tudo que é recado e é
mulher de pouca demora. Não aproveita para beber café, sentar-se numa
esplanada virada ao mundo, desfrutar de uma conversa com gente amiga ou
conhecida. Quando volto a vê-la – ainda leio as notícias – sobraça o alguidar da roupa
já seca. Levo o jornal para o escritório e oiço-a a abrir janelas. Areja
quartos, faz camas, arruma. Entretanto, abro o portátil e espreito novidades,
tento escrever alguma coisa. A essa altura já as caçarolas dão sinal na cozinha.
Chega-se a mim a limpar mãos no avental e põe-me as ementas à consideração. Como
se eu saiba que espécimes me habitam
o frigorífico e o que fazer com eles. À minha recusa em decidir refeições, acrescenta
em voz baixa e firme, é patroa, quem é patrão tem de mandar. Reafirmo, no meu frigorífico mandas tu, és a patroa; eu sei abri-lo e
fechá-lo. Mas não a satisfaço. Olha-me duvidosa a incentivar, não lhe apetece outra coisa,
eu cozinho prá senhora. Deolinda tem treino de obediência e agrado e penso até
que seria mais grata a uma patroa caprichosa e pueril. Na hora de almoço, recusa
comer comigo, fica mal, não pega bem patroa comer com empregado, a senhora não
leve a peito, mas eu sei o meu lugar.
Durante a tarde, haja o que houver, Deolinda passa a ferro, dá uns
pontos na roupa das crianças, ajeita a roupa do dia seguinte e deixa-nos o
jantar preparado. Depois vai buscar os garotos, dá-lhes lanche e banho. Quando fazem os deveres escolares, despe a bata, enfia o vestido de florinhas, humedece as mãos e alisa o cabelo, agarra a malinha e chega ao escritório, vou embora, senhora, témanhã. E desaparece no portão em
corridinhas pequenas. Enquanto a espreito, olho as minhas três páginas escritas. Como é que ela consegue?! Como consegue
sustentar uma família e, vinda dos fundos da noite, trabalhar o dia todo para, já noitinha, voltar para casa num sorriso.
Deolinda
é o abençoado mistério da minha vida. Sem ela, o quotidiano seria outra
coisa.
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