Há
quanto tempo não nos encontramos? Já nem sei. Primeiro, aborreceu-me de morte a
estranheza da tua torre solipsista que teimo em escalar: a constância do teu silêncio feito de tempo, que interrompes em raros
telefonemas; depois, chateou-me que não me atendas se ligo, tenhas sempre telemóvel desligado (não sei porque o
compraste), possuas um computador virgem ( e este, para que o queres?). Pasmo da
tua solidão de sobro alentejano, cortiça,
musgo e líquenes a toda a volta; da tua orfandade sem palavras e que te marca os gestos; dos teus passos em eco pela casa, sempre mais que eles, o andar leve
dos mortos que trazes contigo numa afeição que é demasia e grita do teu rosto
para o meu, estamos aqui, não fomos a enterrar, acode-nos. Da tua expressão
macerada que enfeitas de religião e companhia que não é. Da tua displicência
alentejana que me preteriu por uma prima de Lisboa quando nenhuma de nós
impedia a outra e mais me pareceu evitação propositada. E tudo isso, amiga, me
afastou.
Mas,
à vista do meu silêncio definido e firmado em propósito de caminho encerrado,
ligaste. Apresentaste desculpas. Desfizeste nós. Terás amigas comunitárias,
gente boa e que só arreda pé de S. Pedro para ir ao médico, em excursão a
Espanha, ou peregrinar a Fátima. Mas
nenhuma é eu. Nenhuma. Sou o teu lado perdido, um elo à vida que foste, alguém
que - supões tu – vive no mundo que, em tempos, quiseste teu. E talvez por isso
me aproximas e repeles. Quero fazer-te bem, mas quem sabe se também te deixo um
travo no presente, se cravo um espinho pequeno que fica a incomodar quando te
deixo. Num ai, a tua saudade afirmativa caiu sobre mim e desfiz o muro erguido
entre nós. O definitivo passou a transitório. Um dia destes, o meu carro reaprende
caminho e rola por esse Alentejo fora, sempre em frente, Évora, Reguengos de
Monsaraz, S. Pedro. Aqui e ali, a claridade da cal a pontilhar a planície ainda
enlaivada de verdes. Redondos suaves pegam uns nos outros, aqui uma anca, além o
torneado de um braço, acolá um seio que se entrega. Alentejo é esta terra que o
sol aclara e martiriza, desmedida entrega
a exalar num silêncio de mundo; é este pedido de mãos e dedos aflitos, a erguer-se
de cada sobreiro desgrenhado; esta sublime resignação na humildade que consagra
a pacatez de cada azinheira. E eu sou eles; e corro sentada na hipnótica fita
negra que me seduz, escada em caracol a desembocar na tua rua murada de cal. Eu,
que te tenho uma saudade feita de horas ensacadas, vou derramando bem querença
por esta terra alentejana. Prescindo de procurar-lhe belezas ímpares,
maravilhas, recantos, jardins de respiração florida. Gosto-a assim, em cheiros suados, carcomidos de calor; sinto a aspereza dos cardos nas
pastagens, os pontiagudos do restolho nos pés, a comichão dos fenos por todo o
corpo, a repelência disfarçada da vara no montado. Estremeço-a tanto na
canícula que treme nos olhos, corpo a alagar, como nos invernos que paralisam o
viço nos caules e chamam as artroses pelo nome. O meu amor não obscurece às agruras estivais
ou invernosas; não esmorece no confronto com a altura das serras e amenidade
dos rios; não menoriza à vista de baías e enseadas, de praias vestidas de areia
clara ou mares em fúria no encrespado da rocha. E nada é mais natural. O resto
do mundo vejo-o sendo-lhe exterior; no Alentejo, a identidade é intrínseca e em
alta voz. Grito-me.
E
quando chego em tua casa vou assim, alentejanamente repleta. E o nosso amplexo é
o abraço da terra que a si mesma se devolve. Um compasso de descanso.
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