Até
5 de Junho, o museu Gulbenkian expõe a obra de Almada Negreiros, dos primeiros
aos últimos trabalhos de pintura e desenho, percorrendo todas as fases da sua
criatividade. E é exposição que não envergonha ninguém e pode mesmo emparceirar
com outras que andam pelo mundo ou se visitam em museus estrangeiros. A Gulbenkian está, mais uma vez, de parabéns.
Convém
saber que Almada Negreiros era cheio de nervosismo criativo e não foi apenas um
pintor modernista. Este homem de sete ofícios foi poeta, dramaturgo,
escritor de boa prosa, conferencista e até bailarino (pelo menos durante um ano
integrou o grupo de bailado de Helena de
Castelo Melhor). Um Artista enorme e polifacetado. Há quem o considere genial.
É
na qualidade de pintor-vitralista que o Alentejo dele tem obra. Falamos do
vitral da Capela de S. Gabriel no lugar de Marconi em Vendas Novas. Foi em 1951 que concebeu e desenhou,
no seu traço inconfundível, o vitral que representa a Anunciação, encontro da
Virgem com o arcanjo S. Gabriel - que deu nome à capela - a anunciar-lhe que ia
ser mãe. E o vitral é lindo em todas as horas, mas o amanhecer e a tardinha arredondam-lhe
a beleza por efeito dos raios solares
que, segundo consta, Almada veio estudar in
loco. Uma formusura, o nosso vitral. E é como se um pedacinho de Almada nos
pertença, que somos os únicos alentejanos a ter o vôo breve das suas mãos, um
soslaio da sua mente.
Mas
não é apenas por razões deste calibre que se
deve visitar a exposição da Gulbenkian ( e, se possível, a capela alentejana tão ao abandono). Mas também porque é preciso cultivar os olhos, atentar
nas coisas belas que o homem cria e tanto desconhecemos. Um povo sem arte é um
povo menor, falta-lhe dimensão. Apreciemos os artistas, a sua obra mostra o
melhor do espírito português.
Podem
começar pelo exterior, que a Gulbenkian é uma fundação envolta em jardins que são
cetim a rodear a bela. E tudo isto no meio de Lisboa. Vá, digam lá que não apetece tirar um par de
horas e dar um passeio nos jardins da Gulbenkian, encanto natural projectado
por Gonçalo Ribeiro Telles. Há por lá tanta árvore abençoada, tanto recanto
acolhedor, e um tal cheiro a natureza viva que deambulamos prazenteiros... e o
mais descobre cada um, que o efeito surpresa tem muita força. E eu vinha falar
da exposição do Almada. Ah, pois. Há que voltar ao Almada.
Almada
Negreiros é muito conhecido no mundo das letras pelo Manifesto anti Dantas
(morra o Dantas, morra! Pim!), mas hoje não há tempo para falar da mordacidade
ímpar do Almada e da quezília com Júlio Dantas. Hoje, brilha o pintor. Deixem-se
ir, entrem no Museu da Gulbenkian, comprem o bilhete que nem é caro e disponham
de mais uma hora ou duas só para apreciar o Almada, a alma dele (e a nossa) no
papel, ali à mão, no que desenhou e pintou. Vão. Vale a pena percorrer espaços
iluminados por tanto quadro e desenho. Aquele homem tinha asas nos dedos e a
sua obra põe-nos a nós de bem com os artistas. É certo, era um protegido do
regime. Mas não é com olhos políticos que se olha a obra de um pintor. Usam-se
os olhos de gostar de arte e ser português, os olhos de ver a eternidade que mora em cada
homem. Que essa, podem crer, está em toda a mostra da exposição. Ali brilham
quadros soberbos a par de cartazes de revista, desenhos que fez para
alfaiatarias de renome, murais destinados a hotéis. E, em tudo que pôs a mão, a
beleza irradia.
Lá
está, ocupando toda uma parede, o extraordinário “retrato” que Almada pintou de
Fernando Pessoa. Aquela enorme e hipnótica geometria de tons quentes a alternar
com os sombrios e negros. E, no centro, o Pessoa tímido, o Pessoa anguloso e
recatado e como que surpreendido a meio da escrita, olhos míopes por detrás das
lentes, pássaros medrosos prontos à fuga. A um canto da mesa, a revista Orpheu.
E juro que a alma fraqueja e ajoelha perante aquele quadro que é Grande e não
apenas em centímetros. E, calculem vocês, Almada Negreiros veio a morrer no
hospital e no quarto onde Fernando Pessoa se finou. E depois ainda dizem que
não há coincidências!
Vá,
vão ver o Almada. Façam esse favor aos
olhos e ao espírito (se quiserem, alimentam também o corpo que têm lá por onde).
O Almada, assim posto na Gulbenkian, faz bem a tudo.
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