No
Alentejo, o verão é treino de inferno. Sofre-se com calma, no anseio de noites
frescas que um sopro de brisa aligeire, olhos a adivinhar no astro mudanças
moleculares. À noitinha, os homens sentam à porta a moíção de trabalho e calor,
dedos de pés esticando prazenteiros livres do aperreio de sapato e meia, o
suor a refrescar nas reentrâncias; e há qualquer coisa de terno na timidez indefesa
da carne a branquejar sob o arregaço
de calça que o regadio ensejou. Os homens esperam o dia novo. Que surge,
benza-o Deus, muito igual ao anterior. Em calor, luz e sofrimento. Os
alentejanos que se cobrem como mouros, a defender-se da torrina e dos mil insectos
que o verão importa.
Um
alentejano na praia não é qualquer pessoa. É ele. E mais todo o calor que já viveu e o vincou em
braços e pescoço. E mais o suor que destilou na terra que é sua e ama de paixão.
E mais a imensa saudade da água e que lhe mora na alma. Que não pode este
sentimento dizer-se apenas saudade; é funda necessidade, míngua exacta, falta que
não evapora na beira de um rio. O mar sim. O mar tem a vastidão da sua
necessidade e alberga toda a frescura das brisas. Ali, não precisa poupar na pródiga
liberdade da água que lhe eleva o corpo e o pega ao colo. E descansa sem
remorso na inutilidade da areia onde nenhuma enxada tem préstimo. A praia é breve
recreio onde despe calores e angústias, alija males de viver e se transfigura
empenhado em respirar, cheirar, tocar o ritmo das ondas. Extasia no perfeito milagre
de saber como matar o calor que sente.
Mas
ontem, enquanto muitos vogavam de corpo e espírito, tu fugias do fogo traiçoeiro.
Enquanto uns tinham sol e água fresca em céu sem nuvens, tu corrias com a
família para o carro. Tu apressavas-te para a morte, depressa, depressa, é
preciso sair ou morremos queimados. Enquanto nas praias a água abraçava os
corpos e os apaziguava, o fogo devorava mata, devastava caminho, corria às
cegas destruindo a esmo. Na praia, os alentejanos olhavam o dia claro e a rir,
ainda bem que viemos. E tu num repentino beco sem saída, cercado, o fogo e o
vento contra ti, e agora. Os gritos, a aflição, a dor mais incomensurável e
veemente que existe. A Dor de te saberes dentro da pior morte e ninguém para
salvar-te. A tua dor penetrante de impotência a varar-te, vamos morrer. E o fogo
máquina terrífica e ignóbil, sem pensamento, apanhou-te e andou. Na mesma hora
em que tanto português cabeceava de sono e calor, pasmava para a TV, tomava
banho de mar, partiste dilacerado em dor que não se descreve, ardias por junto.
E tu já não eras tu, sobrou de ti um
resto calcinado de ossos; nada se sabe das tuas carnes, dos desejos que tiveste,
do que pensaste, do que foste. Recuso acreditar que não há despojos. Acho, vê
tu, que ficaste na brisa que a chuva traz e que jamais te afastarás dela que, ontem,
tanto te faltou. Agora que sabes mais que nós, diz-nos, o que fazia o Deus justo
e amoroso nesse momento.
À
noitinha, inconscientes da desgraça, ignorantes deste luto nacional, os alentejanos
viajavam para casa, vidro aberto e braço fora das carrinhas e automóveis,
agradados da chuva e do cheiro a terra molhada, a contornar as árvores caídas
pelas estradas. Pacientes. Felizes. E tu já liberto de todo o mal a ouvi-los e
a pensar, também gosto do cheiro a terra molhada. E eu garanto-te que não sei como és capaz de esquecer o terrível cheiro a
carne viva queimada. A dor. O lamento profundo e insondável de haver tal morte.
Descansa
em Paz.
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